Carta ao Leitor: O escândalo natural
A vigilância, de eleitores e autoridades, é um dado essencial para que o Facebook não faça no Brasil o que é acusado de fazer lá fora: ameaçar a democracia

O escândalo do Facebook não é propriamente um escândalo, no sentido de uma novidade bombástica que nos revela um mundo antes desconhecido e causa espanto e furor. O escândalo do Facebook pode ser tratado como tal por sua dimensão (capturou dados pessoais de pelo menos 50 milhões de usuários da plataforma) e por seu impacto (ajudou, entre outras consequências, a eleger Donald Trump para a Casa Branca), mas não por desnudar um universo ignorado. Ao contrário: o Facebook foi criado para fazer exatamente aquilo que, agora, é acusado de ter feito.
Trocando em miúdos: o modelo de negócios da plataforma consiste em atrair o maior número possível de usuários, obter deles uma vasta gama de dados pessoais, criar um sistema capaz de explorar os interesses dessa massa de usuários — e então vender o conjunto para o uso de empresas e anunciantes. Com isso, uma empresa compradora do material fornecido pelo Facebook consegue dirigir sua propaganda a potenciais clientes, com uma precisão e um apelo inexistentes antes do surgimento das redes sociais. É assim que o Facebook ganha dinheiro e, por isso, pode oferecer-se aos usuários sem custo, como uma plataforma gratuita.
No caso que está chamando a atenção do mundo, sobretudo dos americanos e ingleses, afetados de modo direto pelas notícias de fraude, o Facebook fez exatamente o que vem fazendo desde sempre. A diferença é que, desta vez, não se acertou com uma iniciativa comercial, mas com um bunker político-eleitoral chamado Cambridge Analytica. Com sede em Londres e ligado a Trump, o bunker usou os dados que capturou no Facebook para manipular o voto de milhões de eleitores nos Estados Unidos e, possivelmente, na Inglaterra. Daí o escândalo: em vez de manipular o consumo, manipulou o voto.
Em ano eleitoral, o Brasil precisa estar especialmente atento aos desdobramentos do caso Facebook-Cambridge. A empresa londrina já estava em conversações para atuar no Brasil em 2018, e todos os candidatos presidenciais se empenharão em ter forte presença nas mídias sociais. O mais atuante nesse ambiente, o deputado Jair Bolsonaro, não por acaso está em segundo lugar nas pesquisas.
A vigilância, de eleitores e autoridades, é um dado essencial para que o Facebook e seus clientes não façam no Brasil o que já são acusados de fazer lá fora: ameaçar a democracia, com a manipulação das vulnerabilidades dos usuários eleitores, conjugada com a desastrosa disseminação de notícias falsas.
Publicado em VEJA de 28 de março de 2018, edição nº 2575