Carta ao Leitor: Não somos vira-latas
Cabe fazer uma pausa nas críticas para celebrar algo que funciona de forma espetacular no Brasil: a votação eletrônica nas eleições

Um pouco antes do embarque da seleção brasileira para a Copa de 1958, na Suécia, o dramaturgo e cronista Nelson Rodrigues cunhou a expressão “complexo de vira-lata”, uma sarcástica análise em torno do sentimento de inferioridade do brasileiro em relação às outras nacionalidades. A comparação foi utilizada originalmente para descrever a derrota do Brasil para o Uruguai, em casa, no Maracanazo de 1950 — resultado que condenaria ao ostracismo, absurda e injustamente, o goleiro Barbosa. Mas o próprio Rodrigues dizia que o sentimento de fragilidade ultrapassava as fronteiras dos estádios de futebol e se estabelecia na psique de seus compatriotas: “O brasileiro é um narciso às avessas. Eis a verdade: não encontramos pretextos pessoais ou históricos para a autoestima”. De lá para cá, não tem sido realmente fácil achar razões para arroubos ufanistas.
Por uma conjunção de fatores, que às vezes parecem extraídos das tragédias gregas ou de romances shakespearianos, o país deixa de aproveitar as oportunidades que aparecem e se vê enredado numa sequência interminável de pequenos avanços seguidos de imensos retrocessos, adiando ad infinitum o tão desejado desenvolvimento. Não somos, obviamente, apenas vítimas do acaso, que cruelmente nos guia a um destino infeliz. A escolha de nossos representantes políticos (com exceções, é claro) não tem sido bem-sucedida. A flexibilidade nacional em relação às regras nos leva a uma certa complacência com a corrupção, com o preconceito, com a mentira, com o autoritarismo, prejudicando o estado democrático de direito, a democracia e a própria nação.
Isto posto, cabe fazer uma pausa nas críticas para celebrar algo que funciona de forma espetacular no Brasil: a votação eletrônica nas eleições. No domingo, 15 de novembro, cidadãos de 5 570 municípios irão às urnas para a escolha de prefeitos e vereadores. Mesmo nas cidades mais afastadas dos grandes centros, os vencedores serão conhecidos em algumas horas, com resultados inquestionáveis. É um dos mais emblemáticos casos de sucesso de uma tecnologia produzida no Brasil. O atual modelo de urna eletrônica foi desenvolvido por grupos de engenheiros do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, o Inpe, e do Comando-Geral de Tecnologia Aeroespacial, ligado à Aeronáutica. Desde 1996, ele foi sendo implantado em pleitos e, embora alguns irresponsáveis digam o oposto, nunca houve comprovação de fraude em mais de vinte anos de funcionamento. Numa ação preventiva permanente, o TSE, hoje presidido pelo ministro Luis Roberto Barroso, realiza testes periódicos contra invasões de hackers.
Atualmente, a urna eletrônica é utilizada em 35 países — entre eles, Japão, Coreia do Sul, Austrália e Suíça. Alguns estados americanos também adotaram a tecnologia. Mas, como se viu no sufrágio de 3 de novembro, o grande irmão do Norte ainda prefere um sistema de votação antiquado, permitindo, inclusive, o envio de cédulas pelo Correio, o que atrasa a apuração e, em disputas apertadas, como a que ocorreu neste ano, leva a incertezas e confusão. Não é a primeira vez, lembre-se, que tal impasse acontece. Em 2000, na disputa entre Al Gore e George W. Bush, a indefinição persistiu por semanas, em razão de uma estreitíssima margem na Flórida. O processo chegou à Suprema Corte americana e deixou até hoje uma impressão de fraude. Vinte anos depois, os Estados Unidos, o Brasil e o mundo estão ainda mais polarizados — e toda incerteza ao redor do direito de escolha alimenta impulsos de contestação. É tranquilizador saber que, nessa seara, temos algo a ser invejado globalmente. Adeus, ao menos nas urnas, ao complexo de vira-lata.
Publicado em VEJA de 11 de novembro de 2020, edição nº 2712