Carta ao Leitor: Certezas absolutas
Os efeitos da 'química da teimosia' no cenário politico brasileiro: sem acordos, equilíbrio, diálogo nem sensatez, o que resta é a tensão permanente

No já longínquo 6 de abril, que entrou para a história como o “Dia do Fico” de Luiz Henrique Mandetta, o então ministro da Saúde anunciou que permaneceria no governo, apesar da notória discordância com a postura negacionista do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia de Covid-19. Ele seria demitido dez dias depois. Ao informar que não jogaria a toalha, Mandetta disse ter passado o fim de semana relendo “O mito da caverna”, texto de Platão, capítulo de A República, escrito em 376 a.C. A citação de Mandetta era evidente mensagem cifrada, ou nem tão cifrada assim, mas claramente irônica, para Bolsonaro. O filósofo grego mostra, no clássico tratado, que, acorrentados aos grilhões da ignorância, os seres humanos são privados de conhecimento. Contentam-se com as sombras projetadas na parede da caverna. Veem as manchas da realidade, que tomam pela realidade em si.
Por mais paradoxal que possa parecer, uma das áreas hoje mais sujeitas a distorções, a certezas absolutas ancoradas em pouca ou nenhuma consistência, é a ciência. Tomem-se como exemplo os refutadores do aquecimento global, que mantêm suas convicções a despeito dos irrefutáveis argumentos científicos, ou o modo de pensar dos terraplanistas, para os quais a Terra não é redonda, mesmo com as claríssimas imagens de nosso belo planeta azul. Para essa turma, chegada a conspirações e delírios, a eclosão do vírus que reinventou a humanidade virou pano de fundo propício para a disseminação de tolices de quem permanece na caverna escura, apegado a falsas percepções.
Uma reportagem desta edição de VEJA mergulha em um interessantíssimo estudo da University College London afeito a identificar os processos neurais que dificultam as mudanças de opinião depois que uma ideia se cristaliza no cérebro — até as mais obtusas. Há, de acordo com os pesquisadores, uma certa “química da teimosia”, alimentada e multiplicada atualmente pelo comportamento das pessoas nas redes sociais. Trata-se de algo com potencial altamente destrutivo. Quando transportada ao ambiente político, em que as versões muitas vezes repercutem mais que os fatos, essa química é ainda mais nociva. A polarização radical, que não cede espaço a visões moderadas — postura bastante comum no Brasil atual —, é filha dessa conduta intransigente. Mesmo quando há provas cabais, como denúncias de corrupção ou pressão indevida contra as instituições, os cabeças-duras de um lado e do outro cismam em não abandonar suas preferências. Sem acordos, equilíbrio, diálogo nem sensatez, o que resta é a tensão permanente.
Não por acaso, outra reportagem desta semana disseca os pronunciamentos, as entrevistas e as postagens de Bolsonaro durante a pandemia, de forma a medir a voz que ecoa do Palácio do Planalto. Houve, em quase oitenta dias de pandemia, desde as primeiras medidas de isolamento no Brasil, uma clara tendência: a relativização da gravidade das mortes, exageradas loas à cloroquina — medicamento de eficácia no mínimo duvidosa — e mais elogios a dois ministros do campo ideológico, Abraham Weintraub e Damares Alves, do que a Paulo Guedes. Não se trata, evidentemente, de subtrair do presidente o direito de expor suas ideias e atrelá-las a seu campo político. É do jogo democrático. Decepciona, contudo, a contumaz dificuldade de ouvir opiniões do outro lado, de buscar a moderação e a convergência de que o Brasil tanto precisa. O vírus da teimosia, em qualquer campo do conhecimento, faz muito mal.
Publicado em VEJA de 24 de junho de 2020, edição nº 2692