Carta ao Leitor: Brasileiros, go home
A disposição de Trump de barrar a todo custo os ilegais colide com o aumento do desespero de quem acha que não tem mais nada a perder
“Sozinho vou com a minha dor / Só é a minha condenação / Correr é o meu destino / Por não levar papel.” Esses versos fazem parte da letra de Clandestino, do cantor francês Manu Chao. Lançada no fim dos anos 90, a música virou um hino sobre a condição dos imigrantes ilegais e, duas décadas depois, continua mais atual do que nunca, particularmente quando se analisa o momento dos Estados Unidos. Desde o endurecimento da política de fronteiras do governo de Donald Trump, o número de prisões e deportações vem batendo recordes. O surpreendente efeito colateral da linha dura é que, movidas pela falta de perspectivas, iludidas pelo brilho da terra prometida e prevendo regras ainda mais rígidas daqui para a frente, muitas pessoas entendem hoje que é a hora do agora ou nunca para se lançar na perigosa aventura de tentar atravessar clandestinamente a fronteira americana.
Nos últimos tempos, infelizmente, os brasileiros têm se tornado protagonistas dessa história, ao lado de hondurenhos, guatemaltecos e salvadorenhos, entre outras populações latinas. Do total de 1,6 milhão de brasileiros que vivem nos Estados Unidos, calcula-se que metade desse contingente se encontre em situação ilegal. A cada dia, mais pessoas saem daqui dispostas a enfrentar toda sorte de provações para engrossar essa comunidade de clandestinos. Desde o início deste ano, no entanto, ficaram consideravelmente menores as chances de sucesso para quem se propõe a arriscar tudo em busca do sonho americano pelas vias da ilegalidade. Uma das medidas adotadas pelo governo Trump teve impacto direto na questão devido à ordem que passou a incluir os brasileiros nos Protocolos de Proteção ao Migrante (MPP, na sigla em inglês), também conhecidos como o programa “Fique no México”. Antes dessa determinação, famílias com menores de idade que conseguiam atravessar a fronteira aguardavam em território americano o julgamento do pedido de asilo, com a condição de se apresentar periodicamente às autoridades. Na prática, as pessoas ignoravam essa ordem e simplesmente sumiam dentro do país. Agora, os Estados Unidos devolvem esses imigrantes ao México, e eles são obrigados a aguardar lá por vários meses a decisão sobre o seu pleito (que na esmagadora maioria das vezes é negado). No mesmo período, dentro da atual política de alinhamento do governo brasileiro com o americano, passou a ser permitido o envio para cá de voos fretados com centenas de brasileiros deportados da fronteira.
Nas últimas semanas, o jornalista João Pedroso de Campos colheu depoimentos tocantes de pessoas surpreendidas pela nova política de Trump e que vivem atualmente em albergues em uma das cidades mais perigosas do México, dormindo em colchonetes e respeitando regras como o toque de recolher às 20 horas. VEJA acompanhou também a triste chegada das turmas de deportados pelo novo sistema. Já foram enviados ao Brasil seis voos fretados, cinco deles somente em 2020. A tendência é que essas cenas se repitam com frequência ainda maior ao longo do ano. A disposição de Trump de barrar a todo custo os ilegais colide com o aumento do desespero de quem acha que não tem mais nada a perder. Esse choque tem produzido o drama humano retratado na reportagem que começa na página 30.
Publicado em VEJA de 11 de março de 2020, edição nº 2677