Balões de ensaio
O Congresso e o Supremo discutem o foro privilegiado, mas já há quem defenda abrir uma exceção antes mesmo de estabelecer a própria regra
Desde que a Lava-Jato avançou sobre a classe política, um jargão ganhou os corredores do poder: “Sem foro, é Moro”. O trocadilho explica por que o presidente Michel Temer deu status de ministro a Moreira Franco, acusado de cobrar propina da Odebrecht, e por que Dilma Rousseff, quando ainda governava, tentou fazer de Lula, multi-investigado no petrolão, seu ministro-chefe da Casa Civil. O peemedebista e a petista tentaram blindar seus aliados contra as investigações, livrando-os da pena do juiz Sergio Moro, responsável pelos processos da Lava-Jato na primeira instância. Dilma fracassou, mas Temer conseguiu. Resultado: Moreira continua a despachar no Planalto, enquanto Lula foi sentenciado por Moro a nove anos e seis meses de prisão. Não se trata de um caso isolado. O juiz já condenou 113 réus na maior investigação de corrupção da história do país. Por sua vez, o Supremo Tribunal Federal (STF), a quem cabe julgar os políticos enredados no escândalo, não condenou ninguém. Gozar da prerrogativa de foro representa, até agora, andar de mãos dadas com a impunidade.
Diante disso, causa perplexidade — aparente, como logo se verá — que os parlamentares, eles mesmos, estejam querendo restringir o foro privilegiado, pois, na quarta-feira 22, a Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara aprovou um projeto que mantém a prerrogativa apenas para os presidentes dos três poderes, além do vice-presidente da República. Pelo texto, que ainda precisará tramitar por uma comissão especial antes de ser votado no plenário da Casa, não só os congressistas mas ministros de tribunais superiores perdem o direito de ser julgados em instâncias especiais. “Não dá para ter dois pesos e duas medidas. Se o grande argumento para o fim do foro é ter igualdade perante a lei, que seja assim para todos”, diz Efraim Filho (DEM-PB), relator da proposta na Câmara.
O truque é o seguinte. Sob a aparência de uma boa iniciativa, os parlamentares querem incluir os magistrados e procuradores no balaio dos que perdem o foro com o objetivo de constrangê-los e, assim, levá-los a deixar tudo como está. A CCJ também aprovou a restrição com a intenção de embolar um julgamento retomado na quinta-feira 23 pelo Supremo Tribunal Federal. Até o fechamento desta edição, seis ministros do STF votaram por limitar o foro dos parlamentares em caso de crimes relacionados ao próprio mandato. O julgamento foi interrompido por um pedido de vista do ministro Dias Toffoli.
Ao simularem estar tratando do assunto, os deputados pretendiam dissuadir o STF de discutir o tema. É tão claro que a intenção dos políticos não é limitar o foro que, antes mesmo de ter sido definida uma nova regra, já se começou a discutir uma exceção. O balão de ensaio destina-se a tentar ampliar o rol de contemplados, estendendo a prerrogativa aos ex-presidentes da República, beneficiando Temer, Dilma, Lula, FHC, Collor e Sarney. O mote inicial é evitar que Michel Temer, ao deixar o poder, caia nas mãos de um juiz de primeira instância e acabe na cadeia, enrolado nas malas e nas fitas da JBS. A medida, é claro, também beneficiaria Lula, cujo caso deixaria as mãos de Moro e subiria para o Supremo. “Ex-presidentes têm de ser julgados em um tribunal mais qualificado em função da relevância do cargo”, alega o deputado Vicente Cândido (PT-SP), acrescentando que, como condenar ex-presidente “dá ibope”, o juiz de primeira instância pode cair na tentação. Se a restrição do foro se tornar inevitável, os parlamentares pretendem, ao menos, aprovar uma regra de transição, para garantir que os processos em curso, como os da Lava-Jato, continuem no Supremo. Ninguém quer acertar contas com Moro. Todos preferem a lassidão até aqui demonstrada pela mais alta corte do país.
O foro, que beneficia cerca de 55 000 pessoas, virou uma distorção. Diz o ministro Luís Roberto Barroso, do STF: “Criamos um direito penal que produziu um país de ricos delinquentes. No Brasil, as pessoas são honestas se quiserem, porque, se não quiserem, não acontece nada”.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558