Babel de bolso
VEJA testou os Pixel Buds, os fones do Google usados para tradução. Em situações simples, funcionam — mas estão longe de substituir o ser humano
Não há como estar na Rússia e ficar alheio à relevância da literatura para a história do país. Dostoiévski, Tolstói, Púshkin — eles estão não apenas em livros, mas também nas ruas, nas praças, nas estações de trem e metrô. Só não batizam estádios de futebol. Inspirada nesse dado cultural incontornável, VEJA publicou uma imaginária Copa da Literatura Russa, em que dezesseis gênios da prosa e da poesia em cirílico dos séculos XIX e XX se enfrentavam uns aos outros, com os resultados sendo dados por um time de especialistas. O campeão foi Púshkin, “o nosso tudo”, como dizem os russos. Agora, VEJA fez outra experiência de cunho linguístico: testar os Pixel Buds, os fones de ouvido sem fio (a cordinha, na foto ao lado, serve apenas para que os fones não caiam no chão) lançados pelo Google, em novembro do ano passado, nos Estados Unidos, com a promessa de fazer a tradução simultânea de voz em 59 idiomas, inclusive o russo e o português, direto no ouvido de quem porta o aparelhinho.
O funcionamento: ao tocar com a ponta do dedo no fone direito posto na orelha, basta falar algo no idioma de sua preferência e o texto, já devidamente traduzido, é exibido na tela do celular e reproduzido no alto-falante do smartphone. Depois de uma semana de convivência com cidadãos que pouco usam o inglês (apenas 3% têm fluência na língua) e com a grafia impenetrável para quem não conhece o alfabeto cirílico, é possível estabelecer um veredicto: o mecanismo funciona, e muito bem, em situações comezinhas de uma viagem turística. Salva a pátria de chuteiras. Dá para negociar uma corrida de táxi, algo que pode render acalorados debates sobre o caminho a tomar e o preço a pagar; dá para garantir que o prato venha no cozimento ao gosto do cliente. Permite dizer “obrigado”, receber um “de nada”. Mas conversas mais longas são ainda barreira intransponível — além da esquisitice de reagir ao nada durante a tradução enquanto o interlocutor faz cara de paisagem, num diálogo entrecortado e frágil.
Os Pixel Buds vão bem, mas não sabem tudo nem acertam de primeira. Um exemplo: se conectados ao serviço em português, o nome da cidade que serve de quartel-general para a seleção brasileira, Sochi, é traduzido erroneamente para “sorte” quando se dita “sóchi”. Quando se faz a pronúncia russa, “sôtchi”, o serviço traduz para “south” (sul, em inglês). Mas basta trocar o programa para o inglês e muitos dos problemas são solucionados. Ressalve-se que o Google Tradutor, o software que alimenta os Pixel Buds, é um espetacular avanço — e só melhora com o tempo. Os voluntários na Copa usam e abusam do troço. Os fones é que pedem aprimoramento. Vendida a 129 dólares nos Estados Unidos, a novidade ainda não está disponível no Brasil (e não tem previsão de chegada). Aliás, a função de tradução direta nos fones só funciona se os Buds estiverem conectados ao smartphone Pixel 2, também do Google, cujo preço começa em 649 dólares.
Apesar das imperfeições atestadas por VEJA, os Pixel Buds representam um passo relevante na busca para substituir o ser humano pela inteligência artificial nos casos em que isso for útil. Mas a que ponto chegaremos no futuro breve? A máquina não substituirá os profissionais de tradução e interpretação — ao menos até onde os olhos são capazes de ver. Em construções gramaticais mais complexas, ao lidar com uma palavra de múltiplos significados, a ferramenta ainda é quase monoglota, embora seja capaz de “aprender” com milhões de palavras escritas e ouvidas, numa varrição infindável, registrando o correto e abandonando o errado, atrás de uma lógica semântica.
Hoje, os Pixel Buds não entenderiam, por certo, o que escreveram Dostoiévski, Tolstói e Púshkin. Disse o matemático americano Warren Weaver, um dos pioneiros na tradução automatizada, em meados do século XX: “Nenhuma pessoa razoável acredita que a tradução feita por máquinas um dia alcançará elegância e estilo. Púshkin não se revirará no túmulo”. Para Barak Turovsky, do Google (sim, ele é russo, e se mudou para Israel aos 13 anos), “a ideia é quebrar as barreiras de linguagem e tornar mais fácil a comunicação entre as pessoas. A invenção pode ser usada para namorar, pode ser usada em situações de emergência. As possibilidades são infindáveis”.
Publicado em VEJA de 27 de junho de 2018, edição nº 2588