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As guerras do futuro próximo

O mundo ainda não viveu um conflito de grandes proporções motivado por uma disputa hídrica — mas tensões recentes e a escassez dão razão aos pessimistas

Por Diogo Schelp Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 16 mar 2018, 06h00 - Publicado em 16 mar 2018, 06h00

“A próxima guerra pode ser a da água. Há nessa região do mundo uma escassez terrível de água, e, se os países não cooperarem entre si para desenvolver a tecnologia da dessalinização e da distribuição de líquidos, teremos enormes dificuldades num futuro próximo”, disse em entrevista a VEJA, em 1991, Shimon Peres (1923-2016), que foi presidente e, em três ocasiões, primeiro-ministro de Israel. “Guerras de água”, naquele momento, era uma expressão restrita ao meio acadêmico e a certos círculos políticos. Passados 27 anos, o mundo ainda não enfrentou um conflito armado de grandes proporções motivado primordialmente por uma disputa que envolvesse os recursos hídricos. Mas a previsão de Peres não morreu de equívoco. A água de fato se tornou um dos principais fatores de tensão diplomática entre nações vizinhas — ainda que sem levar à guerra —, inclusive em regiões onde sua escassez nem é severa. Em 2006, por exemplo, a construção de duas fábricas de celulose no lado uruguaio do Rio da Prata levou cidadãos argentinos a protestar contra a possível poluição do curso de água que divide os dois países. O governo da presidente argentina Cristina Kirchner transformou o episódio em uma causa nacionalista, e a ponte entre Uruguai e Argentina ficou fechada por quatro anos, prejudicando as trocas comerciais e o turismo.

Nas regiões do mundo onde a água é criticamente rara, como a África, o Oriente Médio e a Ásia Central, a disputa pelo direito de explorar uma fonte hídrica tem levado à explosão cada vez mais frequente de enfrentamentos violentos, ainda que em pequena escala. Isso ocorre quase diariamente entre tribos pastoris no Quênia e na Etiópia, de tal modo que os governos formaram milícias armadas em ambos os lados da fronteira. Crises hídricas também costumam ser um fator de insatisfação popular com potencial para causar instabilidades políticas sérias. O embrião da guerra civil de maior impacto global da atualidade, a da Síria, que já matou meio milhão de pessoas, foi a seca severa que castigou o país entre 2006 e 2011. “A estiagem forçou mais de 1 milhão de sírios a deixar seus povoados e fazendas para buscar a sobrevivência nos centros urbanos, que já estavam superlotados”, diz o cientista político libanês Hussein Amery, autor do livro Arab Water Security (A Segurança das Águas Árabes, sem tradução em português). A pobreza provocada pela seca e o abandono por parte do governo sírio, mais do que a reivindicação por democracia, motivaram os protestos de 2011, que, posteriormente, descambaram na guerra civil. Não por acaso, as primeiras manifestações ocorreram em Deraa, cidade localizada em uma das províncias mais afetadas pela seca.

O que se vê na Síria e em outros conflitos contemporâneos é a disputa pela água — ou os efeitos sociais da falta dela — funcionando como catalisador de tensões religiosas, étnicas, políticas e territoriais latentes. O objetivo final dos combatentes pode até não ser assumir o controle dos recursos hídricos de determinada região, mas esse pode ser um meio eficiente para chantagear e dobrar a população que se pretende derrotar. Essa foi a tática adotada pelo Estado Islâmico (EI) durante seu avanço sobre território iraquiano em 2014. Em agosto daquele ano, dois meses depois de invadir Mossul, no Iraque, o EI tomou uma represa no histórico Rio Tigre — a maior do país, que abastece a cidade com água e eletricidade. O exército terrorista ameaçava explodir a barragem, o que inundaria diversas cidades ao longo do rio. Para recapturar a represa, o exército peshmerga, formado pela minoria curda iraquiana, lutou por dez dias com a ajuda de ataques aéreos americanos.

Os exemplos aqui apresentados — a tensão diplomática entre Argentina e Uruguai, as escaramuças na fronteira entre Etiópia e Quênia, os protestos de 2011 na Síria e a chantagem hídrica no Iraque — são um prelúdio da profecia de Peres, pois a água para uso humano, para a agricultura e para a indústria é um recurso cada vez mais escasso e valioso. A proporção da população mundial que vive em condições de escassez de água vai saltar de cerca de metade, atualmente, para dois terços, na próxima década. Israel preferiu não esperar a cooperação com outros países, como imaginava Peres em 1991, e resolveu o problema sozinho. Nada menos que 70% da água que se bebe no país é retirada do mar e dessalinizada, a um custo altíssimo. Além disso, 85% da água que iria para o esgoto é tratada e reutilizada, mais do que em qualquer outro país. Se não cooperarem entre si e encontrarem uma solução, os vizinhos árabes terão à sua frente as guerras do futuro.

Publicado em VEJA de 21 de março de 2018, edição nº 2574

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