Apego às armas
Até Trump admite a necessidade de restringir a venda de fuzis de estilo militar para evitar massacres a tiros. Difícil é convencer o Congresso americano
O primeiro dia de aula costuma ser marcado pela excitação, pela alegria de rever os amigos e pela expectativa de novos aprendizados. Já o primeiro dia de aula depois de um massacre a tiros é dominado pela necessidade de confrontar-se com as carteiras vazias dos colegas mortos, reunir-se com os sobreviventes para curar as feridas psicológicas e reconhecer que aquele ambiente nunca mais será o mesmo. Desde 1990, essa situação se repetiu 22 vezes nos Estados Unidos. Esse é o número de tiroteios em escolas em que duas ou mais pessoas foram assassinadas nesse período. Em quatro desses episódios, houve dez ou mais mortos. Na quarta-feira 28, foi a vez de os adolescentes do colégio Stoneman Douglas, em Parkland, na Flórida, retornarem às aulas, duas semanas depois que um ex-aluno invadiu o estabelecimento e matou dezessete estudantes e funcionários a tiros de fuzil. A dor enfrentada pelos jovens do Stoneman Douglas é semelhante à de outros que viveram o mesmo trauma em ataques anteriores, mas há uma diferença: já nas primeiras horas após o massacre eles assumiram a missão de transformar a sua tragédia em um marco na luta contra as leis que fazem dos Estados Unidos o país com a maior proporção de armas de fogo por habitante do mundo. “Eles dizem que leis mais rígidas sobre armas não previnem a violência com armas. Mentira!”, discursou a sobrevivente do massacre Emma Gonzalez, de 18 anos, em um protesto organizado para fazer pressão sobre legisladores.
A disposição de abraçar a causa do controle de armas com tenacidade demonstrada pelos alunos de Stoneman Douglas impressionou até o presidente Donald Trump, que declarou, num lapso de bom-senso: “Nós não queremos esperar duas, três ou quatro semanas até que as pessoas se esqueçam do que aconteceu e outros problemas surjam. Nós temos de impedir que essas coisas aconteçam”. Ele se referia a tiroteios em massa em geral, não apenas em escolas, e passou a enumerá-los: “Columbine, Colorado (treze mortos). Bill Clinton era presidente. Virginia Tech, George Bush (32). Fort Hood (treze), Sandy Hook (26), San Bernardino (catorze), boate Pulse (49) e muitos outros. É ridículo”. O que Trump classificou acertadamente como ridículo é que, apesar dessa sequência de massacres, na maioria cometidos com fuzis parecidos com os que são usados em guerras, o Congresso, capturado pelo lobby armamentista, se revela incapaz de aprovar leis que reduzam o risco de os atiradores comprarem armas com alto poder de fogo. Desde o massacre de Sandy Hook, em 2012, que vitimou principalmente crianças de cerca de 7 anos, mais de 100 leis de controle de armas foram apresentadas no Congresso. Nenhuma foi aprovada.
Três fatores explicam a incapacidade dos políticos dos EUA de impor regras mais rígidas para a compra de armas: o federalismo americano, o lobby de fabricantes e proprietários e a opinião pública. A eles:
• O federalismo nos Estados Unidos dá muito mais autonomia aos estados do que acontece no Brasil. O grau de facilidade com que se compra uma arma de fogo varia muito entre os estados. Illinois, por exemplo, adota regras rígidas: os proprietários precisam ser cadastrados e ter atestado negativo de antecedentes criminais. Mas, no estado vizinho, Indiana, pode-se comprar uma arma usada com a mesma facilidade com que se adquire um cortador de grama. Não por acaso, 60% dos crimes ocorridos em Chicago, a maior cidade de Illinois, são cometidos com armas que vieram de fora do estado. Em tese, isso poderia ser resolvido com leis de alcance nacional, mas elas enfrentariam a resistência dos políticos locais ou poderiam ser barradas pela Justiça se ferissem o princípio de autonomia estadual. Na segunda-feira 26, Trump teve um gostinho disso em um encontro com governadores para tratar dos massacres nas escolas. Ele insistia em sua ideia controversa de armar e treinar professores para enfrentar futuros atiradores. A opinião dos governadores a esse respeito era tão díspar que, ao final, Trump disse: “Vão e façam como quiserem”.
• Os defensores do controle de armas nos Estados Unidos têm um vilão muito bem definido: a Associação Nacional de Fuzis (NRA, na sigla em inglês), que faz lobby pesado e poderoso pelo direito ao porte de armas no país. O argumento recorrente é que muitos legisladores se recusam a criar leis contra as armas porque são financiados pela NRA. De fato, a entidade e suas organizações afiliadas gastaram 54 milhões de dólares nas eleições de 2016 para garantir o controle republicano no Congresso e da Casa Branca. A campanha de Trump recebeu 30 milhões de dólares.
• Além do receio de perder doações, os políticos temem perder votos, pois ainda é expressiva a parcela de americanos que defendem a venda livre de armas. A proporção daqueles que querem um controle mais rígido da venda de armas vem aumentando gradativamente nos últimos anos, e hoje está em 46%. Mas, somando-se os que gostam de como as coisas estão atualmente com os que querem até mais liberdade de venda de armas, essa massa soma 47% — 1 ponto porcentual a mais (veja o quadro acima).
Publicado em VEJA de 7 de março de 2018, edição nº 2572