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A vida após a tempestade

Alvo da mais rumorosa batalha de custódia do Brasil, o adolescente Sean Goldman conta, pela primeira vez, sua versão dos acontecimentos

Por João Batista Jr., de Nova Jersey
Atualizado em 4 jun 2024, 16h23 - Publicado em 27 jul 2018, 07h00

O adolescente, que completou 18 anos em maio, agora aproveita suas férias escolares de verão. Em sua rotina diária, acorda e toma banho tendo como vista o Rio Navesink, que margeia o quintal de sua casa e em cujas águas ele aprendeu a nadar. Depois, desce para a cozinha, no térreo da casa de dois andares, e prepara seu café da manhã, que inclui ovos mexidos e salsicha. O rapaz está empenhado em ganhar massa muscular para incrementar seus 65 quilos distribuídos em 1,87 metro. Em seguida, pega seu carro Ford Edge, cor prata, e dirige até o trabalho: a charmosa marina de Sandy Hook. O percurso entre a casa, na cidade de Tinton Falls, e o emprego, em Highlands, dura 25 minutos. A paisagem inclui corredores de carvalhos e mansões de executivos de Wall Street que construíram casas de veraneio na costa do Estado de Nova Jersey. Da marina, dá para enxergar a silhueta dos arranha-céus do sul da Ilha de Manhattan, localizada a 37 quilômetros de distância dali.

Há quatro meses Sean Richard Goldman dá expediente de cinco horas por dia como encarregado do clube onde estão ancoradas cerca de 100 embarcações — entre elas, o Contender, barco movido a dois motores de popa que pertence ao seu pai, David Goldman, guia de turismo naval na região. Encerrado o expediente na marina, o jovem segue de carro para a academia. Exercícios físicos fazem parte de sua rotina há anos. Na escola, ele chegou a praticar três modalidades esportivas: basquete, futebol americano e lacrosse, jogo com bastão e bola de borracha bastante popular nos Estados Unidos. Ele concluiu o ensino médio há dois meses pela escola Holmdel, a 25ª melhor no estado. No baile de formatura, dançou com uma namorada, com quem ficou dois anos e meio. O casal rompeu semanas depois da valsa. Mesmo antes de se formar, ele começou a estudar administração em uma faculdade perto de sua casa. Tirou carteira de habilitação provisória aos 17 anos, idade permitida no estado onde mora. Ele e seu pai são apaixonados por pesca marítima. “Já peguei robalo de 40 quilos”, conta. Em casa, ele próprio prepara sushi e sashimi, seus pratos favoritos. O fascínio pelo mar o faz optar por cruzeiros sempre que sai de férias com o pai. Os dois já estiveram na Itália, no México e em Honduras. O próximo destino será a Islândia.

A vida após a tempestade
ANTES DA BATALHA –  Bruna, David e Sean em passeio em 2001 (Álbum de família/.)

A vida atual de Sean Goldman pouco difere da de outros adolescentes americanos de classe média — exceto por um imenso detalhe. Sean vive na companhia do pai há oito anos e meio, depois de protagonizar a mais rumorosa e intensa batalha judicial por uma custódia entre Brasil e Estados Unidos. Ele foi alvo de “subtração infantil”, termo técnico para designar a situação em que um dos responsáveis legais viaja para um país com a criança sem o consentimento da outra parte ou sem a intenção de voltar. Seu drama começou em 16 de junho de 2004 e teve momentos como uma morte precoce e desdobramentos como uma audiência entre dois presidentes na Casa Branca.

Sean é fruto do relacionamento entre um ex-modelo americano e uma estilista carioca. David Goldman e Bruna Bianchi se conheceram na Itália em 1997, quando tinham 32 e 24 anos respectivamente. A decisão de cruzar o Atlântico, trocando a agitada Milão pela pacata Nova Jersey, onde David tinha casa e parentes, deu-se quando Bruna engravidou. Nos Estados Unidos, os dois se casaram. Sean nasceu com 3,8 quilos no Hospital River­view, na cidade de Red Bank. A escolha do nome se deu porque o casal considerou que ele seria fácil de escrever e pronunciar para ambas as famílias. O entrosamento entre os novos parentes era tanto que os pais de Bruna, Raimundo e Silvana, compraram uma casa nos Estados Unidos para ficar perto do neto. De quando em quando, os Goldman iam visitar a família brasileira no Rio de Janeiro.

A vida após a tempestade
NO GRITO – Bandeiras e palavras de ordem na manifestação pela permanência de Sean no Rio, em 2009 (Sergio Moraes/Reuters)
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O destino começou a tomar outro rumo em junho de 2004. David assinou um documento que autorizava a viagem de Sean com a mãe para o Rio, onde eles iriam passar duas semanas de férias. O garoto tinha então 4 anos. Dias depois de desembarcar no Aeroporto do Galeão, Bruna ligou para o marido para pedir o divórcio e informá-lo de sua decisão de criar o menino no Brasil. David ficou em choque — acreditava que o casamento corria bem e queria a criança ao seu lado. Passado um mês, a juíza encarregada do caso no Brasil concedeu tutela antecipada do filho a Bruna. David contratou a advogada americana Patricia Apy, que abriu uma ação civil na Suprema Corte de Nova Jersey com o propósito de intimar Bruna a retornar e a devolver a criança. A não devolução fez a ex-mulher de Goldman ser processada por “subtração infantil”. A Convenção de Haia, acordo que Brasil e Estados Unidos subscrevem, prevê que casos como esse devem ser julgados pela Justiça do país de onde a criança foi tirada. Ou seja, os Estados Unidos, e não o Brasil.

O labirinto jurídico ficou mais estreito e tumultuado com a ocorrência de uma tragédia. No Brasil, Bruna obteve o divórcio unilateral e casou-se, em 2005, com o advogado João Paulo Lins e Silva, integrante de um influente clã de advogados. Ela morreu três anos depois, ao dar à luz a primeira filha do casal, Chiara. Uma hemorragia seguida de outras intercorrências foi a causa de sua morte, aos 34 anos. A partir daí, a briga pela guarda da criança ganhou novos desdobramentos. David não foi avisado de que seu filho se tornara órfão de mãe. Ele só soube da morte da ex-mulher porque uma amiga brasileira viu no extinto Orkut que haveria uma missa de sétimo dia em homenagem a Bruna. Goldman acreditou que o caso iria se encerrar — afinal, o garoto ficara órfão de mãe, mas tinha pai. Ocorre que, com autorização da avó materna, o padrasto de Sean, Lins e Silva, entrou com uma ação de paternidade socioafetiva e obteve sua guarda provisória. “Ele queria arrancar o nome de David Goldman da certidão de nascimento da criança para pôr o dele, desconsiderando o vínculo biológico”, diz Ricardo Zamariola Junior, advogado brasileiro de Goldman. Como também em guerras jurídicas a verdade é a primeira vítima, iniciou-se uma campanha difamatória contra Goldman. “Disseram que eu era agressivo, inventaram que nunca procurei meu filho e insinuaram que eu era homossexual”, recorda o pai de Sean. Por orientação dos advogados, Goldman não se encontrou com Bruna nem com o filho desde que a briga pela guarda começou. Se o fizesse, Bruna poderia contestar a acusação feita por ele nos tribunais de que ela havia cometido um sequestro internacional.

David Goldman ganhou forças para levar o filho de volta para os Estados Unidos com a ajuda do deputado republicano Chris Smith, que se tornou seu principal aliado. O parlamentar entrou na história depois que sua mulher viu uma reportagem sobre Goldman na televisão. “Ajude esse pai”, implorou ela. Smith veio ao Brasil em três ocasiões durante os desdobramentos jurídicos do processo, e articulou a entrada de Hillary Clinton no caso. Hillary, então secretária de Estado no governo de Obama, chegou a ameaçar o Brasil com sanções econômicas e a possibilidade de os Estados Unidos não votarem no Rio para sede da Olimpíada de 2016. O assunto ganhou ainda mais destaque quando Obama pediu a Lula que desse atenção à questão durante um encontro em março de 2009, na Casa Branca. No Brasil, a pressão também aumentava. A avó materna, Silvana, apoiou a realização de passeatas em que os participantes portavam faixas com os dizeres “Fica, Sean” pelas ruas de Copacabana. Pessoas levantavam bandeiras do Brasil, dando contornos de guerra diplomática para o caso.

Sean carrega cicatrizes dessa época. Diz que não gosta de futebol por ter sido obrigado pela família materna a vestir a camiseta da seleção brasileira em 23 de dezembro, após a Justiça autorizar a sua entrega definitiva ao pai biológico. Ele foi levado até o consulado americano no Rio no meio de um tumulto. O motorista da avó estacionou o carro a três quarteirões de distância do lugar. Dessa forma, Sean, Silvana e o padrasto, Lins e Silva, percorreram o trajeto cercados por cinegrafistas, jornalistas e curiosos.

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Seu retorno para os Estados Unidos foi seguido da assinatura de um acordo judicial, que previa a visita da avó, Silvana, em datas especiais, até que o menino completasse 16 anos. Ela chegou a vê-lo em mais de dez ocasiões. Mas, findo o prazo do acordo, acabou o contato — por iniciativa de Sean. Lins e Silva, o padrasto, afirma que as condições impostas a Silvana eram despóticas. “Ela podia ficar só uma hora com ele, sempre na presença de uma psicóloga. Não havia possibilidade de nenhuma intimidade”, diz. Sean dá outra versão.

A vida após a tempestade
NORMALIDADE-  Pesca nas águas geladas de Nova Jersey, em 2017 (Álbum de família/.)

“Fiquei surpreso quando minha avó deu uma entrevista afirmando que nunca mais tinha me visto depois que eu vim para cá. Então, decidi cortar o contato”, conta Sean. Ele diz ter sido vítima de alienação parental. Enquanto estava no Brasil, ouvia que seu pai nunca o havia procurado e não gostava dele. “A primeira coisa que meu filho me perguntou quando me viu foi: ‘Por que você me deixou?’”, lembra Goldman. Sean demorou dez dias para pronunciar a palavra “pai” depois de retornar para Nova Jersey. Lins e Silva, o padrasto, diz manter uma foto de Sean até hoje na mesa de seu escritório. Mas não sabe se entraria com o mesmo processo pela guarda. “Eu convivi com ele, meu sentimento nunca vai acabar. Mas cada coisa tem seu tempo e espaço.” Procurada por VEJA, a avó Silvana não quis dar entrevista.

O caso do menino Sean ganhou destaque devido a seus desdobramentos diplomáticos, mas está longe de ser o único. Desde então, o Brasil viu crescer o número de episódios de subtração infantil. Só nos seis primeiros meses deste ano foram registrados 65 (durante todo o ano de 2009, foram 59 ocorrências). A crise econômica é uma das razões desse aumento. Muitos brasileiros deixaram o país em busca de um futuro melhor e acabaram construindo família no exterior. Se ocorre o divórcio, alguns optam por retornar — e querem a companhia dos filhos. “A Bolívia tornou-se um dos principais países para onde crianças brasileiras são levadas ou de onde são trazidas”, diz a advogada Natália Camba Martins, coordenadora-geral da Autoridade Central Administrativa Federal para Adoção e Subtração Internacional de Crianças e Adolescentes do Ministério da Justiça. Trata-se de um reflexo do grande fluxo migratório dos vizinhos latinos para cá. Em 2015, foi criada a Vara de Subtração Internacional de Crianças. Isso fez com que os processos ganhassem celeridade. “O caso de Sean, que durou quase seis anos, poderia ter sido resolvido em metade desse tempo.”

Se não tivesse tido uma solução ainda, o processo seria extinto agora que o jovem completou 18 anos. Sean Goldman poderia escolher com quem ficar. Há dois meses, encerrou-se a ação de partilha da herança de sua mãe. O patrimônio foi dividido em três partes: uma para Sean, outra para Chiara e outra para Lins e Silva, o viúvo. Cada um ficou com 1 milhão de reais. “A minha vida é a mais comum que se possa ter, mas ela só é possível porque a justiça foi feita. Minha mãe morreu, mas eu tenho um pai. Meu lugar era com ele. Eu perderia muita coisa caso não tivesse retornado para os Estados Unidos”, diz.


“Fui vítima de muitas mentiras”

Alvo de uma disputa por sua guarda que durou quase seis anos, Sean Goldman perdeu a mãe durante o parto de sua meia-irmã, Chiara, que nunca mais viu desde que voltou para os Estados Unidos. Com 18 anos completados em maio, ele vive com o pai, David Goldman, em Nova Jersey, onde concluiu o ensino médio e iniciou a faculdade. Há dois anos, rompeu relações com a avó materna, a brasileira Silvana Bianchi, a quem acusa hoje de ter tentado afastá-­lo de seu pai biológico. A seguir, sua entrevista.

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O que faria agora caso a Justiça não autorizasse seu retorno para os Estados Unidos? Como fui vítima de alienação parental, não imagino o que faria agora porque meus pensamentos seriam distorcidos. Eram muitas mentiras que me contavam. Não trouxe meu skate porque minha avó disse que aqui só tinha neve…

O que teria perdido caso não tivesse retornado? A convivência com meu pai, meus amigos e a experiência na escola. Levo uma vida normal e livre, ao contrário do que tentaram me convencer. Aqui eu pesco, faço caiaque.

Você viveu no Brasil entre seus 4 e 9 anos. Demorou a se acostumar com o inglês? Não. Mas às vezes escorrego em algumas palavras. Português, mais entendo do que falo. Lembro das minhas comidas favoritas, como arroz com feijão, coxa de galinha e churrasco.

Adolescentes costumam ser ativos em redes sociais, mas não é o seu caso. Por quê? Não uso Facebook há anos, não estou no Twitter e tenho Instagram fechado para os amigos, mas só postei três fotos. Entendo haver curiosidade sobre mim, mas não gosto de me expor.

Quando você percebeu que era alvo de um embate pela sua guarda? Há cinco, quatro anos. Foi um processo lento, mas hoje sei que foi uma subtração infantil. Quando voltei para cá, eu era muito pequeno. Faço terapia desde então. E, claro, tive cu­riosidade de ler notícias da época pela internet.

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Tem alguma relação com sua avó? Havia um acordo para ela me visitar até os meus 16 anos. Ela veio mais de dez vezes, mas depois disse em entrevista não ter me visto desde a minha volta. Por essa mentira, decidi romper a relação. Na verdade, adoraria ter contato com ela e com o Brasil. Mas minha família não agiu de forma normal.

Você tem algum contato com sua meia-irmã, Chiara? Gostaria, mas precisaria da intermediação da minha avó e do padrasto. Ele nunca mais me procurou. Isso mostra que não entrou na disputa porque me amava.

Por que você acha que se deu uma disputa tão renhida? Por orgulho. Não era para me criar, mas para não perder uma briga judicial. Fui vítima de muitas mentiras. Disseram que meu pai não me queria, até para influenciar a opinião pública. Temos de falar sobre os fatos, para que a subtração infantil diminua. Os pais podem se separar, é natural, mas é preciso que cheguem a um acordo, para a criança não sofrer e todos terem vida normal.

Como você vê a medida de Donald Trump de separar pais e filhos na fronteira dos EUA? Sou contra a separação. Como eles não deveriam vir sem permissão, a regra deveria ser deportar toda a família.

Você tem namorada? Estava namorando até há poucas semanas. Fiquei dois anos e meio com uma garota do colégio. Agora estou focado na faculdade e no meu trabalho na marina.

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Quais são seus planos? Entrei na faculdade de administração, e o curso dura dois anos. Quero ficar no momento aqui em Tinton Falls e depois ver o que pode me acontecer. Gosto da Califórnia, quem sabe um dia more lá.

 

 

Publicado em VEJA de 1º de agosto de 2018, edição nº 2593

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