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A tragédia virou drama

Um ano após o acidente com o voo da Chapecoense na Colômbia, a extraordinária comoção que envolveu o mundo deu lugar à briga das famílias pela indenização

Por Alexandre Senechal e Jefferson Coppola (fotos), de Chapecó
Atualizado em 4 jun 2024, 18h28 - Publicado em 24 nov 2017, 06h00

No rastilho da tragédia de 29 de novembro do ano passado, a comoção espalhou-se em ondas por todo o mundo. A hashtag #ForçaChape e suas variantes passaram a ser reproduzidas nas redes sociais, em manchetes de jornais, em faixas, em camisas, em luminosos projetados em monumentos históricos. A queda do avião da companhia boliviana LaMia na região montanhosa perto do Aeroporto Internacional de Medellín, na Colômbia, matou 71 pessoas, entre jogadores e comissão técnica da Chapecoense, jornalistas e tripulação. Houve apenas seis sobreviventes. Em poucas horas, um clube pequeno da cidade catarinense de Chapecó, que voava para a sua primeira final internacional, a da Copa Sul-Americana, ganhou notoriedade que jamais conquistara, e do modo mais estúpido possível. Os cinco dias entre o acidente e o funeral coletivo pareciam reproduzir uma frase do colombiano Gabriel García Márquez: “O amor se torna maior e mais nobre na calamidade”. Na cerimônia realizada no mesmíssimo local e horário em que deveria acontecer a partida contra o Atlético Nacional, o então ministro brasileiro das Relações Exteriores, José Serra, resumiu de modo genuíno e bonito o sentimento predominante: “Neste momento de tristeza para as famílias e para todos nós, as expressões de solidariedade que encontramos nos oferecem um grau de consolo imenso, uma luz na escuridão, quando estamos todos tentando compreender o incompreensível”.

Exato um ano depois, quando todos ainda tentam compreender o incom­preen­sível, a tragédia virou drama, e aquele amor que parecia não caber em si virou outra coisa. O choro se traduz em reclamação. A solidariedade agora é desconforto. O consolo deu lugar a uma nítida sensação de injustiça (leia os depoimentos abaixo). #ForçaChape é apenas uma fotografia na parede, um post no Facebook esmaecido pelo tempo. Até a terça-feira 21, a Chapecoense já havia sido acionada judicialmente em quinze processos trabalhistas movidos por parentes de jogadores e funcionários do clube. Outras sete ações cíveis foram abertas pelas famílias de jornalistas que estavam a bordo da aeronave. As indenizações podem superar a casa de 1 bilhão de reais, considerando o valor do salário das pessoas embarcadas, a expectativa de vida de cada um e os danos morais provocados pelo desastre. Esse montante em ressarcimentos equivaleria à inviabilização da Chapecoense, que inapelavelmente teria de fechar as portas. “Faremos todo o possível para agilizar o andamento das ações”, garante o atual presidente da Chapecoense, Plínio David De Nes Filho. “Esperamos dar o que merecem por justiça.”

A demora na conclusão dos processos incomoda os familiares e, embora permita que a Chapecoense respire momentaneamente, é ensaio geral para a inexorável conta que virá pela frente. Há complicadores que justificam as delongas. A investigação sobre o acidente envolve autoridades de três países: Bolívia (a sede da empresa LaMia e de onde partiu a aeronave), Brasil (por ser o país do clube catarinense, o contratante do voo) e Colômbia (o local da queda). Para o Brasil e a Colômbia, as conclusões são claras. O Ministério Público Federal brasileiro diz não haver “qualquer evidência de que algum brasileiro possa ter dado causa ou tenha contribuído para o trágico acidente” e que a escolha da LaMia se deu apenas por uma questão de preço — o valor do fretamento era de 140 000 dólares, menos da metade do orçamento encaminhado por uma concorrente. Ou seja: exime o clube de culpa na esfera criminal. O Grupo de In­vestigação de Acidentes Aéreos (GRIAA) da Aeronáutica Civil da Colômbia, unidade administrativa responsável pelo tráfego aéreo naquele país, divulgou um informe preliminar sobre as causas do acidente — o relatório final segue sem previsão de divulgação — no qual o motivo provável para a queda da aeronave é “consistente” com a falta de combustível.

Na Bolívia, contudo, só há sombras. Apura-se, ali, como foi autorizada a decolagem de uma aeronave cuja autonomia de voo era exatamente a mesma da distância até o aeroporto de destino, e, portanto, muito próxima do risco de pane seca. Além disso, para que um voo seja liberado pelas autoridades aeroportuárias da Bolívia, é necessária a apresentação de uma apólice de seguro válida que garanta sua operação. A seguradora que emitiu a apólice para a viagem da aeronave da LaMia, a boliviana Bisa Seguros y Reaseguros, recusa-se a desembolsar o valor do prêmio estipulado (25 milhões de dólares) sob a alegação de falta de pagamento da companhia aérea. E mais: a Bisa apresentou uma cláusula contratual, aceita por todas as partes, pela qual se excluiu a Colômbia da cobertura — haveria indenização apenas se o avião tivesse caído em território boliviano. Por precaução, antecipando evidentes problemas judiciais, a seguradora Bisa entrou em acordo com os familiares dos tripulantes bolivianos, em troca do compromisso de que não a acionarão legalmente. Aos brasileiros, a seguradora oferece o que chamou de “fundo humanitário”: a cifra de 200 000 dólares para cada família, o equivalente à metade do valor da apólice. A proposta foi recusada pelos brasileiros, que já anunciaram que entrarão com uma ação coletiva na Justiça da Bolívia.

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Tudo é desacerto, e, enquanto não brotam definições, as peças se movimentam tentando ampliar as compensações. Há um denominador comum: as viúvas de muitos jogadores se queixam de não ter recebido dos empregadores dos maridos tudo o que lhes cabia por direito. Rosangela Loureiro, mulher do meia Cleber Santana, conta que a Chapecoense pagava 50% de seu aluguel na cidade. Depois do acidente, ela pediu que o auxílio fosse mantido e recebeu uma resposta positiva do clube. Três meses depois, porém, Rosangela descobriu que o pagamento não estava sendo feito. “Sorte que o dono do apartamento era amigo da família, caso contrário teria sido despejada”, diz ela. As viúvas de outros membros da comissão técnica, contratados como pessoas jurídicas, e não por meio da CLT, com todos os direitos assegurados, alegam ter sido esquecidas, sem receber um centavo do clube como reparação — apenas o valor amealhado até agora com amistosos, leilões, doações de empresas e pessoas físicas: 61 000 reais por família, divididos em três parcelas. É o caso de Fabienne Belle, viúva de Luiz Cesar Martins Cunha, o Cesinha, fisiologista da equipe à época do acidente. Outros parentes só tiveram seus pedidos atendidos depois de reivindicar diretamente ao atual presidente do clube. Embora defenda a postura da instituição, o presidente Nes Filho admite fragilidade no tratamento dedicado ao longo do último ano. “Pode ter acontecido. Não por falta de vontade, mas sim de informação.” Para reparar a falta de assistência nos últimos meses, o clube estreitou, nas últimas semanas, o contato com os grupos que defendem os direitos de reparação: a Associação Brasileira das Vítimas do Acidente com a Chapecoense (Abravic) e a Associação dos Familiares e Amigos das Vítimas do Voo da Chapecoense (AFAV-C).

Os familiares, em busca de valores maiores, costumam lembrar uma consequência evidentemente involuntária das mortes: a expansão da “marca” Chape­coense. De acordo com um estudo feito pela consultoria de marketing esportivo BDO, no último ano o valor de mercado do clube praticamente dobrou, sendo estimado hoje em 65 milhões de reais. Em 2017, a Chapecoense esteve em Barcelona para a disputa de um amistoso contra o time de Lionel Messi e companhia. Na Itália, enfrentou a Roma e encontrou-se com o papa Francisco em visita ao Vaticano. E ainda viajou ao Japão para a disputa de um torneio amistoso contra o campeão nacional do país asiático. O clube catarinense afirma que está reservando 80% do seu lucro líquido para o pagamento de indenizações, quando os valores forem decretados. Ainda no ano passado, 5,4 milhões dos 6,7 milhões de reais registrados como superávit foram separados pela Chapecoense como “reserva de contingência”. A previsão é que esse valor suba em 8 milhões de reais neste ano, já que a expectativa de balanço financeiro para 2017 é de 10 milhões de reais no azul.

Em terreno tão delicado, os passos são tímidos, consternados, sem lágrimas. A diretoria da Chapecoense decidiu não realizar nenhum tributo na semana de lembrança da tragédia. Os familiares não esperam — nem querem — que as homenagens se estendam. Há duas semanas, foi realizada em Chapecó uma cerimônia para as 68 famílias brasileiras (dos 64 mortos e dos quatro sobreviventes) impactadas diretamente pela desgraça na Colômbia — a agenda foi propositalmente antecipada a pedido dos familiares, justamente para não coincidir com o aniversário do acidente. Na manhã do sábado 11, o ministro do Esporte, Leonardo Picciani, esteve no interior catarinense para entregar a Cruz e a Medalha do Mérito Desportivo aos representantes de cada uma das vítimas, além de repetir a promessa de apoio total do governo brasileiro na apuração do caso. O dia seguiu com palestras e outras mesuras. A muitos dos presentes, cultos como esse já não preenchem o vazio. Disse a VEJA o parente de um dos mortos, que vive em Chapecó e preferiu não se identificar, com receio de provocar mal-estar: “Esse tipo de evento, apesar de bonito e emocionante, é uma forma de limpar a barra do clube e da diretoria pela falta de ações consistentes desde a tragédia”. Há um duplo anseio, e só: velocidade e justiça, de modo a transformar o drama em normalidade — o cotidiano duro das coisas findas, e, embora findas, permanentes.


A incessante busca pelos culpados

PAINEL-AVIAO LAMIA-ACIDENTE CHAPECOENSE.png
FALTOU COMBUSTÍVEL – Os marcadores do painel de controle mostraram que todos os três tanques de gasolina estavam vazios (//)

A quem caberá, no fim das contas, a responsabilidade pelo acidente com o avião da Chapecoense? Para a Direção-Geral de Aeronáutica Civil da Bolívia (DGAC), órgão equivalente à Anac brasileira, os proprietários da empresa aérea LaMia eram dois: os pilotos Miguel Quiroga, o comandante morto no voo de 29 de novembro de 2016, e Marco Antonio Rocha, foragido da Justiça. Esse último disse em entrevista ao site de VEJA, em dezembro do ano passado, que a aeronave usada pela LaMia fora alugada de um ex-senador venezuelano, Ricardo Albacete. É sua filha, Loredana Albacete, que consta como proprietária do avião na cópia do contrato de fretamento para a Chapecoense entregue ao Ministério Público Federal brasileiro. Na investigação feita pelo MPF, foram obtidas trocas de e-mail que mostram claramente Loredana nego­cian­do os detalhes de pagamento em nome da LaMia para um voo anterior, de 18 de outubro, referente à viagem para o jogo entre a Chapecoense e outra equipe colombiana, o Junior Barranquilla. Sobre o envolvimento da família Albacete, as autoridades boli­via­nas nada disseram.

Sem a conclusão do inquérito, os advogados não conseguem estabelecer os alvos das ações cíveis e criminais. Contudo, para não perderem o prazo, entrarão na Justiça contra a LaMia, a DGAC e o governo boliviano. Os processos devem ser instaurados nos próximos dias. Se há demora nas definições de culpa, de maneira a saber quem pagará pelos danos, já não há dúvida sobre o que e quem provocou a queda, embora o relatório final não tenha sido divulgado. O grande erro foi do comandante Quiroga, que, obviamente, não pode ser imputado, tampouco se defender. Foi dele a decisão de não parar para reabastecer, de acordo com o plano de voo submetido à autoridade aeroportuária da Bolívia. Na Colômbia, os investigadores atestaram que “não existia evidência aparente de combustível em toda a região do acidente”. Ou seja: os tanques estavam vazios. Uma foto anexada ao relatório preliminar (reproduzida acima) mostra os três marcadores de combustível da aeronave zerados — embora haja a possibilidade técnica de que os ponteiros tenham voltado ao início quando a eletricidade da aeronave foi cortada. É improvável.

Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2017, edição nº 2558

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