Carta ao Leitor: A teimosia criminosa
Passados cinco anos do incêndio na boate Kiss, o clamor por “nunca mais” caiu num vazio absoluto

A tragédia da boate Kiss, que matou 242 jovens em Santa Maria, no Rio Grande do Sul, é um daqueles horrores capazes de abalar um país inteiro. Ocorrido na madrugada de 27 de janeiro de 2013, o incêndio na casa noturna foi recebido com desespero, revolta — e um clamor único: nunca mais. Pedia-se que nunca mais a negligência e a irresponsabilidade voltassem a se somar para ceifar tantas vidas e ainda tão jovens. A capa de VEJA apelava para que, em memória dos mortos, ninguém mais fosse vítima “do descaso, da negligência, da corrupção de valores”.
Na semana passada, uma equipe de VEJA revisitou a cidade gaúcha. Durante quatro horas, os jornalistas da revista, acompanhados por Flávio José da Silva, o pai de uma das vítimas, examinaram os escombros da boate — filmaram, fotografaram, e deixaram o local “com um nó na garganta”, nas palavras de Silvio Navarro, editor que coordenou a equipe. A reportagem começa na página 76 e está, também, disponível no site de VEJA, com depoimentos e amplo material visual.
Além da dor provocada por um episódio tão dramático, há um enorme desalento em constatar que, passados cinco anos do incêndio, o clamor por “nunca mais” caiu num vazio absoluto. À exceção de três bombeiros, julgados por um tribunal militar, ninguém foi punido. Da carnificina, não se extraiu uma única lição útil. A chamada Lei Kiss, aprovada em 2017, recebeu tantos vetos que se tornou uma peça praticamente inócua, incapaz de dissuadir a ação de gente despreparada e irresponsável.
É lamentável que nada disso seja, de fato, uma novidade. As tragédias nacionais — enchentes devastadoras, naufrágios amazônicos, desabamentos urbanos, intermináveis mortes no trânsito — são costumeiramente recebidas com promessas eloquentes por parte das autoridades, mas nada, ou quase nada, acontece depois que os corpos são enterrados e os sobreviventes deixam os holofotes e se recolhem no silêncio de uma dor que não passa.
Os estudiosos dizem que existem acidentes de três tipos: os que resultam de uma falha humana, os causados por uma falha de engenharia e os acidentes de sistema — esses últimos, decorrentes de uma sucessão de erros, são praticamente inevitáveis. Em Santa Maria, a negligência — dos donos da boate, dos músicos, dos bombeiros, da prefeitura — chegou a tal ponto que não há exagero em dizer que ocorreu uma quarta categoria de acidente: uma sucessão de falhas humanas. E, no entanto, mesmo tudo isso sendo evitável e passível de correção, nem assim se fez nada, nem assim os responsáveis foram punidos. Até hoje. É uma teimosia criminosa.
Publicado em VEJA de 24 de janeiro de 2018, edição nº 2566