A selfie da Via Láctea
Um novo mapa em 3D criado pela Agência Espacial Europeia para retratar a galáxia deve servir de base para as futuras grandes descobertas da astronomia
Nosso sistema solar é tão somente mais um entre os 40 bilhões que existem na Via Láctea. Até agora, pouco se sabe sobre essa quantidade verdadeiramente astronômica de estrelas — e ainda maior de planetas — da nossa vizinhança cósmica. Contudo, um estudo divulgado pela Agência Espacial Europeia (ESA) pode representar um passo determinante na busca de compreender melhor esses arredores. Com o uso do satélite Gaia, em operação desde 2014, astrofísicos compilaram minuciosos dados, como a posição quase exata e a intensidade do brilho de 1,7 bilhão de estrelas da galáxia. Mesmo que isso seja ainda em torno de apenas 5% do total de astros que devem existir na Via Láctea, o levantamento indica que se está no caminho certo para a criação de algo como um GPS, uma selfie, do espaço ao redor de nós.
Ferramentas de referência confiáveis como o mapa construído com dados coletados pelo satélite Gaia — que ainda deu origem a um vídeo de navegação em 3D pela Via Láctea (disponível até no YouTube) — servem de base para que cientistas possam depois chegar a conclusões surpreendentes acerca do universo. Foram instrumentos inventados lá no século XVI pelo dinamarquês Tycho Brahe (1546-1601) que possibilitaram depois a observação dos planetas do sistema solar e a defesa irrefutável do heliocentrismo, o hoje manjado modelo (naquele período, rejeitado pela maioria) da Terra dando voltas ao redor do Sol. Já na década de 40, o astrônomo sueco Knut Lundmark apoiou-se no melhor e mais avançado dispositivo que tinha em mãos, sediado em seu país natal, para desenhar a primeira concepção da Via Láctea com a forma que se tem hoje como a certa: um conglomerado oval de estrelas e planetas girando ao redor de um centro de força gravitacional colossal.
No caso do mapa desenhado pela equipe da ESA, ainda são meras especulações todas as descobertas que podem surgir a partir desse novo recurso agora disponível a todos os cientistas que queiram explorar os mistérios do universo. O Gaia, o satélite usado para o trabalho e cujo lançamento custou 740 milhões de euros (em torno de 3 bilhões de reais), orbita o Sol com seus sensores captando a luz emitida por estrelas a milhões de anos-luz de distância. A mesma tecnologia pode ser usada, por exemplo, para rastrear, dentro do novo cenário mapeado, a localização de asteroides que possam se tornar uma ameaça para a Terra. O GPS cósmico da ESA também já revelou a existência de um estranho corpo celeste: uma estrela que teria sido ejetada de sua galáxia e veio se aninhar na Via Láctea, viajando em altíssima velocidade.
Antes mesmo de se completar uma semana do lançamento do novíssimo catálogo de estrelas da vizinhança, em torno de vinte estudos foram divulgados tendo como base as informações agora sabidas. Cientistas devem debruçar-se sobre os dados inéditos por décadas antes de conseguirem explorá-los por completo — se é que se chegará um dia a esse esgotamento. “As observações do Gaia estão redefinindo as fundações da astronomia”, resumiu, sem modéstia, o astrofísico alemão Günther Hasinger, diretor da área científica da ESA. “Esse nosso trabalho ainda mostrou a necessidade de investir em projetos longevos quando se quer garantir o progresso da tecnologia e da ciência, sobretudo para implementar missões espaciais ainda mais ousadas nas décadas vindouras.”
Publicado em VEJA de 9 de maio de 2018, edição nº 2581