A Rússia na encruzilhada
A viagem de São Petersburgo a Moscou revela um país fascinante, que navega entre a nostalgia e a insegurança econômica
Em maio de 1790, durante o reinado de Catarina, a Grande, a czarina que fingia namorar as ideias do iluminismo francês, mas que na prática ampliou ainda mais o fosso entre a nobreza, os mujiques e os servos, um livro clandestino incomodou o trono da Rússia. Em Uma Jornada de São Petersburgo a Moscou, um jovem nobre, poeta e filósofo, Alexander Radishchev (1749-1802), percorreu um naco da porção ocidental do país para denunciar a servidão, a pobreza e o autoritarismo. Aos relatos reais, de personagens de carne e osso que entrevistava, somou a descrição de sonhos, de modo a alimentar sua diatribe. Radishchev foi preso, julgado por sedição e condenado à morte por crime de lesa-majestade. Salvou-o o príncipe Gregório Potemkin, o marechal de campo que se tornara amante da soberana. Radishchev, então, foi exilado na Sibéria. À margem da Copa do Mundo, VEJA refez a rota de 228 anos atrás. As diferenças entre os séculos XVIII e XXI são, evidentemente, monumentais, mas a repetição do trajeto ajuda a mostrar os problemas que Vladimir Putin, o czar da hora, tem pela frente e os humores de um povo empobrecido, na lida com o capitalismo que deu as caras apenas em 1991, depois do colapso da União Soviética.
De Radishchev: “Quando saí de Petersburgo, senti-me lisonjeado por estar seguindo na melhor das estradas. Pelo menos é o que achavam todos que a tinham percorrido no rastro do imperador. De fato, fora assim — mas por um curto espaço de tempo. A sujeira virava lama com as chuvas de verão, transformando o caminho num pântano enlameado quase intransponível”. Numa manhã clara de quarta-feira, a trupe que acompanhou a reportagem de VEJA — o motorista, Mikhail Kotelnikov; o fotógrafo, Yuri Kozyrev; e a intérprete, Natália Verenich — tomou a estrada M-10, o ponto de partida da Rodovia Transiberiana (não confundir com a mítica Ferrovia Transiberiana), que em seu segmento inicial, de São Petersburgo a Moscou, perfaz cerca de 700 quilômetros. Íamos a bordo de uma van Mercedes Sprinter — e não de charrete, como fez Radishchev. A pista, em seus pedaços esburacados, não é muito diferente dos piores trechos da Via Dutra. E a primeira surpresa não demorou a aparecer — a poucos metros de onde seguíamos, um Ford Transit, com quinze anos de vida, bateu contra um ônibus a gás e explodiu. Em poucos minutos, a lataria foi reduzida a nada. Carros velhos são comuns na Rússia. Há 18,9 mortes no trânsito para cada 100 000 pessoas. No Brasil são 23,4. Nos Estados Unidos, 10,6. Kirill, o condutor do veículo incendiado, cujo choro parecia desproporcional a seu corpo enorme, deu de frente com um coletivo cujo destino era Tosno, por coincidência a primeira parada da expedição, a 62 quilômetros de Piter, como os russos chamam a cidade de Pedro.
TOSNO
Os órfãos do time de futebol
Não poderia haver história mais representativa do descompasso entre a vida real e a Copa do Mundo de 2018 (orçada em quase 10 bilhões de dólares, cerca de 38 bilhões de reais, 5 bilhões a mais que o gasto no Mundial do Brasil) do que a triste sina do Tosno Futebol Clube. Em 9 de maio, o time conquistou a Copa da Rússia — venceu o Spartak na semifinal e, na finalíssima, derrotou o Avangard Kursk no Estádio Volgogrado, uma das sedes da Copa. Um mês depois, fechou as portas. O principal investidor, um grupo imobiliário, decidiu não mais apostar no negócio. O empresário Maxim Levchenko, o mandachuva da operação, foi ao Facebook em 12 de junho para explicar: “A curta mas brilhante história do Tosno chega a um triste porém compreensível fim”. Foram todos sumariamente despedidos, inclusive o padre ortodoxo que presidia a equipe.
Leonid Khomenko, de 56 anos, homem atarracado, feito quase só de músculos, vai até a sala de flâmulas, abre um armário e de lá tira uma enorme caixa azul de madeira. De dentro dela saca a taça de ferro e cristal, tinindo de nova. “Nem sei o que dizer, é uma decepção sem tamanho”, diz. “Ninguém entende por que acabou.” A sensação é de orfandade, sobretudo para os meninos entre 13 e 15 anos que continuam a treinar no gramado bem cuidado, para disputar sabe-se lá que torneio. “É um sonho, e passou”, afirma Alexei Nossov, de 15 anos, que deixou a Ucrânia com os pais, fugindo da guerra, há quatro anos. Nossov se desculpa por estar de terno, sem uniforme de treino. Ele tinha vindo direto do último dia de aula.
LIUBAN
Da arte de montar os fuzis Kalashnikov
Em Liuban, nossa próxima parada, descobre-se que crianças mal entradas na adolescência, como Alexei Nossov, querem ser jogadores de futebol, mas outras, e são muitas, gostam de se identificar com o passado militarizado da Rússia. Alexei Osipovo, 10 anos, Serguei Novikov, 11, e Kirill Peshkov, 12, sobem como um raio a colina que dá em um pequeno cemitério com os restos mortais dos 95 000 cidadãos de Liuban que perderam a vida entre 1941 e 1945, na chamada Grande Guerra Patriótica contra os nazistas. Descem das bicicletas, tiram os bonés da moda e começam uma disputa, como quem joga bola de gude, para saber qual dos três monta e desmonta mais rapidamente os fuzis de assalto Kalashnikov. Eles são instados à demonstração pelo vereador Vladimir Razumov, de 36 anos, do partido Rússia Unida, o mesmo do presidente Putin. “É fundamental apresentar às crianças, logo cedo, as noções de patriotismo”, diz Razumov. Os meninos fazem parte do Yunarmia, o Exército Jovem, formado em 2016, que reúne cerca de 190 000 meninos e meninas entre 8 e 18 anos distribuídos em 85 regiões da Rússia. Não que estejam indo à guerra, mas o ministro da Defesa, Serguei Shoigu, insiste na importância da organização para “criar um vínculo entre os jovens do país e as Forças Armadas”. O Exército Jovem é um tributo dissimulado ao passado, uma combinação do Komsomol, a ala jovem do Partido Comunista, com os Jovens Pioneiros da era soviética. Seus integrantes se reúnem em acampamentos de verão, brincam, ouvem música, plantam árvores, namoram, fazem tudo o que a meninada faz — e aprendem a lidar com armas. “É boa educação patriota, simples assim. Não somos um país militarizado”, diz Razumov.
CHUDOVO
Os ciganos vindos de Chernobyl
Em Chudovo, alheio ao patriotismo, um grupo de 300 famílias de ciganos da cidade preocupa-se com a festa de casamento de Ludmila Mihai, que aconteceria no sábado 23. A simplicidade externa das casas, pobres, esconde o luxo interno e os bonitos vestidos que estão sendo costurados. Os moradores saíram da região de Chernobyl, logo depois do acidente nuclear de 1986, para tentar vida nova. Vivem como dá. Não trabalham, não frequentam faculdade — apenas a escola do bairro, apartada do currículo oficial. Cada núcleo familiar recebe do Estado ajuda de 1 000 rublos mensais, o equivalente a 60 reais. Num dos grupos, para alimentar diariamente quinze pessoas, são necessários pelo menos 2 000 rublos, estima o patriarca. Há 400 000 ciganos na Rússia. Muitos vendem heroína, comprada do Afeganistão, um segredo de polichinelo, e assim ganham o sustento. Os ciganos são parte permanente das estatísticas de desemprego.
KRESTTSI
“Não existia liberdade, mas para quê?”
A taxa de desemprego na Rússia é de quase 6% da população, de 144 milhões de pessoas — embora os especialistas digam ser difícil aferi-la, dada a quantidade de cidadãos não registrados que trabalham em suas dachas, as casas de campo. O número já foi bem maior (13%, em 1999), mas era menor no primeiro ano do pós-comunismo (5%). No tempo da União Soviética, com a economia planificada, sem propriedade privada — ao custo da falência do Estado —, inexistia a noção de desemprego. A falta de trabalho é constatação que, olhando para trás, incomoda os cidadãos mais velhos, que viveram a idade adulta no comunismo. Na beira da rodovia M-10, em Kresttsi, numa cena que lembra muito o Brasil, os moradores das cercanias vendem piroshki, empanadas de batata, e chá servido em samovares. A unidade da empanada ou o copo de chá, cada um, sai por 45 rublos. Num bom dia dá para fazer 675 rublos. No mês, vendendo muito, eles juntam 20 000 rublos (o salário de um professor de crianças é de 8 000 rublos, o equivalente a 480 reais). “Não consigo emprego”, diz Natasha Lisenko, de 51 anos, que trabalhava recolhendo tíquetes de ônibus. “Antes era melhor, havia colocação. Não existia liberdade, mas para quê? Agora só sobrevivemos.” Natasha diz não votar, porque ninguém merece seu voto, e que “Putin só quer saber de política exterior”.
VALDAI
“Agora trabalho mais perto de Deus”
Vladimir Vladimirovich, de 58 anos, já foi cozinheiro na casa de campo de Putin na verde e bonita região de Valdai. Antes era oficial de submarino, esteve em guerras no Vietnã e na Etiópia. Foi secretário regional do Partido Comunista. Gostava mesmo era de Leonid Brejnev (1906-1982). Está aposentado. Trabalha como guarda no portão de entrada do Monastério Iverski, pousado numa ilha fluvial, frequentado pelo presidente russo e que nos anos soviéticos virou hospital. No fim de tarde, as cúpulas douradas refletem o sol, e, como no verão o dia só escurece depois das 22 horas, o idílio parece permanente. Vladimirovich olha para trás e sorri. “Agora pelo menos trabalho mais perto de Deus.” Reconhece viver num país mais aberto: “Antes tinha de servir ao Estado e só”. Mas insiste em dizer que “tudo era mais seguro”. Provocado, levado a detalhar o que, afinal, havia de bom anteriormente, dispara uma típica tirada de humor russo, rápida, certeira, os dentes à mostra: “O melhor de antes era a minha juventude”.
A nostalgia da URSS é realidade. Não é a vontade de tê-la de volta, é outra coisa. Para 69% das pessoas com mais de 55 anos, o fim do sistema soviético poderia ter sido evitado, segundo levantamento do Instituto Levada, o único centro de pesquisa respeitado. Entre as pessoas de 18 a 24 anos, que nasceram depois que Boris Ieltsin subiu nos tanques, a percepção saudosista é de apenas 27%. Os chorosos lamentam a destruição da economia unificada (54%) e revelam a sensação de já não pertencerem a uma superpotência (36%). Em todas as faixas etárias, sem distinção, quando se indaga o que une os russos, quando costuram uma linha do tempo imaginária, 46% evocam “nossa história”.
BOLOGOIE
22 de junho de 1941
As camadas de história da Rússia talvez a façam diferente de qualquer outro país. Em pouco mais de 100 anos, houve mudanças de tirar o fôlego. O trem de alta velocidade, o Sapsan, que chegou há meros cinco anos, corta rapidamente cidades que sempre gostaram de lamber as feridas do tempo mais calmamente, tentando não romper com o que passou, mesmo em momentos de ruptura radical. O rompimento se dá mesmo nas altas esferas burocráticas, não no cotidiano comezinho. Em Bologoie, o ruído dos vagões chispando emolduram a praça da estação de trem em que há uma escultura de ferro de um avião, homenagem a um morador local que morreu servindo na Síria, muito recentemente, e o busto de Vladimir Visotski, cantor, dramaturgo e ator de ascendência judaica que morreu em 1980, aos 42 anos, de overdose. Com sua voz rouca, à Tom Waits, ele cantava o dia a dia, era ouvido subversivamente, como antes se liam Soljenítsin e Bulgákov às escondidas. Em Eu Não Gosto, ele diz: “Eu não gosto de excesso de confiança / Eu preferiria deixar falhar meus freios / Me irrita que a palavra honra tenha sido esquecida / E que agora a honra seja uma calúnia diante dos olhos”.
É a honra, segundo Lagushin Alexander Anatolievich, de 60 anos, coordenador do movimento dos veteranos da Grande Guerra Patriótica, que justifica a presença de uma centena de pessoas na Praça da Vitória, em Bologoie, em 22 de junho — o dia em que o Brasil ganhou da Costa Rica por 2 a 0, Neymar tentou enganar o juiz num pênalti e Tite saiu rolando pelo chão. Em 22 de junho de 1941, com a Operação Barbarossa deflagrada por Hitler, a URSS entrou definitivamente na guerra, contra o Eixo. Em Bologoie, agora, 77 anos depois, há comunistas (Anatolievich é um deles), putinistas, cossacos, oposicionistas. Estudantes vestem-se como em 1941, os alto-falantes ecoam avisos de rádio daqueles dias, há no ar uma atmosfera de túnel do tempo. “Respeitamos nossos ascendentes, nossos pais, nossos avós”, diz Anatolievich. “Precisamos sempre relembrar, não importa que apito toquemos.” É como se, no tempo congelado, fosse permitido afastar os problemas do presente.
VISHNI VOLOCHEK
Os dois cavalos de batalha da economia
Na Rússia, estão jogando futebol na Copa, mas, fora dos estádios, longe das Fan Fests e dos televisores domésticos, a vida é outra. Dois dos principais problemas que não saem dos noticiários de TV e dos jornais têm a cara do Brasil. No dia da abertura do Mundial, a Duma e o Conselho da Federação, o equivalente à Câmara e ao Senado, começaram a discutir a proposta de reforma da aposentadoria apresentada pelo primeiro-ministro Dmitri Medvedev, fantoche de Putin. O plano é aumentar progressivamente a idade mínima de aposentadoria dos homens em cinco anos (hoje é 60) e das mulheres em oito anos (hoje é 55). A grita é imensa. O líder da oposição, Alexei Navalny, convocou para 1º de julho um protesto nacional. “O aumento da idade de aposentadoria é um autêntico crime”, postou no Instagram. O outro ruidoso nó está nas estradas. Um novo sistema de coleta de impostos de caminhões com mais de 12 toneladas foi deflagrado há dois anos. Desde então, os caminhoneiros promoveram interrupções nas rodovias, e anunciam mais. O mecanismo corrói os vencimentos dos motoristas. A alegação de Putin: até 58% dos danos em estradas são provocados por veículos muito pesados, e o governo decidiu compensar o prejuízo com o novo imposto.
Igor Pintchukov, de 51 anos, está num restaurante de estrada perto de Vishni Volochek. Para pagar o PF que está comendo, precisa rodar 125 quilômetros. Quase não descansa, faz 1 500 quilômetros sem parar, “porque do contrário não vale a pena”. Dirige o caminhão de uma processadora de carnes e não tem mais veículo próprio. “Com os impostos na altura em que estão, é impossível”, diz. “Antes de 1917, por muito menos os operários saíram às ruas de Leningrado. As condições de vida eram melhores e eles protestavam.”
TVER
“Há um cheiro ruim no ar”
Há quem proteste de outro modo. Andry Perelpks, de 55 anos, é dono da Big Ben, uma casa noturna de Tver, cidade a 175 quilômetros de Moscou. Apaixonado por Pink Floyd, Perelpks era um garoto que amava os Beatles e os Rolling Stones. Nos anos 1970 e 1980, escutava as canções proibidas, em discos contrabandeados, em execuções clandestinas dentro de apartamentos — os chamados kvartirnik, nos quais se entrava secretamente. Por respeito histórico à memória de seus avós, e de todos os avós, na noite de 22 de junho, a da entrada na guerra, decidiu pôr no palco só cantores melancólicos, tristes mesmo. Não quer muito pensar nos caminhos para a Rússia, mas é uma daquelas pessoas que, a perguntas óbvias, oferecem raciocínios inteligentes. Depois de muita insistência, alerta: “Há um cheiro ruim no ar”. Segundo Perelpks, de nada adianta haver liberdade dentro de casa — como não havia na União Soviética — se “não existe liberdade na rua”.
“Meu filho, de 21 anos, a tudo contesta, mas tenho mais medo das pessoas que estão de acordo com tudo”, afirma. Em Tver, o grupo de jovens associados ao comitê de Alexei Navalny, o ferrenho opositor de Putin, discorda de tudo. Todos eles foram presos em março, pouco antes das eleições que Putin venceria com mais de 56% dos votos sob acusações de fraude. Têm como bandeira a grita contra a reforma da aposentadoria e defendem a liberdade de expressão. Comunicam-se pelo Telegram, mais seguro do que o WhatsApp. Divulgam seus passos pelo VKontakte, um Facebook local de imenso sucesso. Toda vez que vão às ruas, além de presos, pagam multa. “Não vivemos numa democracia”, diz Yana Zaharova, de 27 anos, cabelos coloridos, camiseta do Batman. Artur Bavrin, também de 27, leva na roupa um desenho de Putin em que se lê “já estamos cheios”. Para Andrey Prokudin, da mesma idade, “nos tratam como se fôssemos assassinos”. Mas eles não têm medo e seguirão nas ruas. “Os frutos virão mais tarde, mas virão”, diz Prokudin. Artem Vazhenkov, o mais velho do grupo, 37 anos, faz uma homenagem à ironia na sua camisa preta que traz a frase de 1984, de George Orwell: “Guerra é paz, liberdade é escravidão, ignorância é força”, o lema do Grande Irmão. De São Petersburgo a Moscou, a Rússia olha para trás, sente-se desconfortável e procura uma saída. Como numa frase de Putin, inspirada na famosa tirada de Churchill: “Aquele que não lamenta o fim da União Soviética não tem coração, mas quem quer restaurá-la não tem cérebro”.
De Radishchev, nas linhas finais de sua jornada: “Mas, caro leitor, falei demais. Já estamos em Vsesvyatskoe. Se não for cansativo, espere por mim na encruzilhada; nós nos encontraremos novamente em nossa caminhada de retorno. Agora, adeus. Siga em frente, cocheiro. MOSCOU! MOSCOU!”.
Publicado em VEJA de 4 de julho de 2018, edição nº 2589