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A pátria de tornozeleiras

O Brasil já é o segundo país do mundo com maior número de portadores do equipamento, cujo uso é um pouco mais complicado do que parece 

Por Renato Onofre e Ullisses Campbell
Atualizado em 4 jun 2024, 18h36 - Publicado em 22 jul 2017, 06h00

A segunda maior população de usuários de tornozeleira eletrônica no mundo está no Brasil. São pelo menos 28 000 os brasileiros que, por ordem da Justiça, estão sendo monitorados pelo equipamento, em prisão domiciliar, regime aberto ou semiaberto e em saídas temporárias como no feriado de fim do ano. Esse número só é menor que o registrado nos Estados Unidos (70 000), o primeiro país a adotar o dispositivo, na década de 70 (o Brasil só aderiu a ele em 2010). Na Argentina, há apenas 1 000 unidades em circulação. O Chile possui 4 000 e a Colômbia, 3 000. Na Europa, o país com mais tornozeleiras é a Inglaterra (20 000). Os dados são da Spacecom, a maior empresa do ramo no Brasil e na América do Sul. Eles se baseiam nos contratos de licitação do produto celebrados nos países.

Se, para o Estado, o equipamento é uma forma de reduzir a superlotação dos presídios, para detentos significa o sonho da liberdade, ainda que restrita. Ultimamente, diante do brutal desequilíbrio entre oferta e procura, as tornozeleiras vêm sendo disputadas a tapas. Rodrigo Rocha Loures, ex-deputado e assessor do presidente Michel Temer, por exemplo, corre o risco de voltar em breve para a cadeia. Isso porque, afirma o Ministério Público, sua tornozeleira deveria estar no pé de outro preso. Segundo o promotor Fernando Krebs, no dia em que Loures recebeu seu dispositivo, dois pedidos idênticos e anteriores aguardavam por resposta na gaveta da Administração Penitenciária de Goiás. “Há indícios claros de que o ex-deputado foi indevidamente favorecido”, alega Krebs. Na quinta-feira passada, o MP entrou com novo pedido para recolher a tornozeleira de Loures — o primeiro havia sido negado em 14 de julho. Ele foi preso depois de ter sido flagrado pela PF transportando uma mala com 500 000 reais que, segundo delatores, era destinada ao presidente Temer.

No Paraná, os presos da Operação Lava-Jato é que arcam com as despesas de monitoramento das tornozeleiras — 280 reais mensais por unidade. A tarefa de observar por um painel eletrônico se eles estão ultrapassando o raio de distância permitido pela Justiça — de até 50 metros a partir da porta do domicílio — cabe à 12ª Vara Federal de Curitiba. A diretora da vara, Celine Salles Migdalski, é responsável pelo monitoramento de 47 presos, vinte deles da Lava-Jato. Quando a primeira tornozeleira chegou à 12ª Vara, em 2015, ela a testou por uma semana. “Posso dizer que é bem desconfortável”, diz. Usuários quei­xam-se de que o equipamento, depois de instalado, não fica bem ajustado à região do maléolo — projeção óssea do tornozelo. Conforme o preso caminha, a tornozeleira se movimenta e machuca a área. Outro problema surge na hora de dormir, quando o peso da perna comprime o dispositivo, causando incômodo.

O SUSPEITO E O BONZINHO – Rocha Loures (de óculos, na foto à esq.): pela segunda vez, o ex-assessor de Temer corre o risco de voltar para a cadeia pela acusação de ter furado a fila da tornozeleira. Outro usuário, o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró (foto à dir.) é tido como “dócil” e já chegou a ser esquecido na chuva pela equipe responsável por seu monitoramento
O SUSPEITO E O BONZINHO – Rocha Loures (de óculos, na foto à esq.): pela segunda vez, o ex-assessor de Temer corre o risco de voltar para a cadeia pela acusação de ter furado a fila da tornozeleira. Outro usuário, o ex-diretor da Petrobras Nestor Cerveró (foto à dir.) é tido como “dócil” e já chegou a ser esquecido na chuva pela equipe responsável por seu monitoramento (André Coelho e Pablo Jacob/Agência O Globo)

Uma das primeiras presas da Lava-Ja­to a usar tornozeleira foi a doleira Nelma Kodama. Mas, por sair de casa, esquecer de recarregar o equipamento e usar extensões elétricas não autorizadas para alongar a distância entre a bateria e a tomada, ela coleciona onze falhas em sua ficha na 12ª Vara. Já o ex-diretor da área internacional da Petrobras Nestor Cerveró é tido como um dos usuários mais dóceis. “Ele nunca cometeu uma falha”, conta Celine. Como mora na região serrana do Rio, o sinal do GPS de sua tornozeleira volta e meia falha, o que faz com que os servidores da Justiça em Curitiba tenham de ligar várias vezes ao dia para pedir-lhe que tente restabelecer a conexão. “Dizemos a ele para ir à área externa da casa por cinco minutos até recuperar o sinal”, explica Celine. Esse comando pode ser dado a qualquer hora do dia ou da noite. E já gerou situações desconfortáveis para o ex-diretor da Petrobras, condenado em duas ações penais na Lava-Jato. Em fevereiro, ele recebeu uma ligação da Justiça porque o sinal do GPS mostrava que poderia estar fora de casa. Apesar de Cerveró ter atendido o telefone fixo, o que sugeria que permanecia na residência, os servidores consideraram a possibilidade de ele estar usando um sistema de desvio de chamadas do telefone fixo para o celular (suspeita nada descabida em se tratando de alguém que já planejou fugir do país navegando em um veleiro). Chovia, era noite e fazia frio na região serrana. Mesmo assim, os servidores determinaram que Cerveró permanecesse na área externa até que o sinal voltasse. Ele pediu para esperar a chuva passar e teve a solicitação negada. Para seu azar, conta Celine, a equipe cometeu um lapso na ocasião. “Ele saiu, o sinal do GPS voltou, mas acabamos nos esquecendo de telefonar novamente, e ele ficou na chuva por cerca de trinta minutos”, conta.

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No ano passado, um dos presos monitorados pela equipe da diretora, o condenado por tráfico Márcio Cristiano Santos, solicitou permissão para viajar de férias para o interior de São Paulo. O juiz negou o pedido. Ele foi assim mesmo, e uma equipe de monitoramento notou que o sinal da tornozeleira do traficante revelava que ele havia desobedecido à ordem. Por determinação do juiz, a equipe limitou-se a continuar monitorando os passos do preso. No dia seguinte, o sinal estacionou em um ponto no município de Sertãozinho (SP) e lá ficou. Ao ampliar a pesquisa, Celine descobriu que o ponto coincidia com uma delegacia. O traficante, que viajou com um carregamento de 18 quilos de crack, havia sido preso no percurso e se encontrava detido. Perdeu a tornozeleira, o benefício da prisão domiciliar e voltou para o regime fechado.

Além de arcarem com os custos do monitoramento, os usuários de tornozeleira são obrigados no Paraná a pagar 2 000 reais se danificarem os equipamentos. No caso dos presos da Lava-Jato, a maioria, como mora fora de Curitiba, tem de bancar as despesas de deslocamento quando é preciso submeter o dispositivo a manutenção, o que provoca novo rosário de reclamações — imediatamente estancadas quando os funcionários da 12ª Vara lembram a alternativa: voltar para a prisão. Como se vê, é ruim a tornozeleira, mas é bem pior sem ela.

Publicado em VEJA de 26 de julho de 2017, edição nº 2540

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