A fantasia no poder
O romantismo revolucionário de 1968 não abalou as estruturas sociais, mas abriu a era do protagonismo da juventude — e da contestação e destruição criativa
“A liberdade só existe onde não é invocada.” A frase do escritor e jornalista Ludvik Vaculik (1926-2015), da Checoslováquia, foi citada na reportagem de capa da edição de número 1 de VEJA, de 11 de setembro de 1968, cuja manchete era “O grande duelo no mundo comunista”, para resumir o espírito reformista que tomara conta do satélite soviético naquele ano, no episódio que ficou conhecido como Primavera de Praga. O movimento, que começou com a ascensão, em janeiro, de Alexander Dubcek (1921-1992) para o cargo de secretário-geral do Partido Comunista e ganhou forma intelectual no manifesto Duas Mil Palavras, de autoria de Vaculik, não pretendia derrubar o regime comunista, apenas lhe conferir uma “face humana”, com respeito às liberdades individuais. Foi esmagado em agosto pelos tanques soviéticos e pela mentira, difundida com sucesso entre outros países por detrás da Cortina de Ferro, de que não passava de um esforço contrarrevolucionário patrocinado por agentes externos. “O sonho da liberdade era absolutamente inaceitável, um verdadeiro veneno para os regimes comunistas”, diz o historiador Stefan Karner, da Universidade de Graz, na Áustria.
Mas não foi só em Praga que as massas — jovens, em sua maioria — foram às ruas para invocar liberdade. O mesmo fenômeno repetiu-se em inúmeras cidades ao redor do mundo. De Berlim à Cidade do México, de Paris a Tóquio, de Chicago ao Rio de Janeiro, a juventude dos anos dourados do período pós-II Guerra Mundial voltou-se com fúria contra o establishment político, os traços autoritários da sociedade (mesmo nas democracias), a intolerância racial, o machismo e as guerras estúpidas travadas em países distantes, que mais pareciam prolongamentos das batalhas colonialistas do passado. As imagens desses conflitos, como a do capitão vietcongue sendo executado com um tiro na cabeça no Vietnã e as de crianças morrendo de fome em Biafra, na África, serviam para confirmar as suspeitas dos universitários revoltosos do Ocidente de que, escondidos na fachada democrática de seus governos, se ocultavam verdadeiros fascistas.
“A crise de 1968 nasceu de uma juventude que, em contato com teses ‘esquerdistas’ (anarquistas, maoistas, trotskistas), rejeitava a sociedade burguesa e sonhava com uma revolução que, partindo da universidade, ganharia a sociedade inteira”, diz o historiador francês Serge Berstein, do Instituto de Estudos Políticos de Paris (Sciences Po). “Esses jovens desejavam combater o conservadorismo no poder, mas também o comunismo stalinista e o socialismo democrático. Eles encontravam inspiração em um Terceiro Mundo que mal conheciam, mas idealizavam.” Muitos estudantes americanos e europeus viam a Revolução Cultural de Mao Tsé-tung — um violento período de aprofundamento do processo revolucionário chinês que matou 3 milhões de pessoas ao longo de dez anos e atingiu seu auge em 1968 — com admiração, pois ela representava a tão almejada luta do novo contra o velho por meio da autocrítica caótica e seu fim. “Mao incentivava os jovens a dizer qualquer coisa, a denunciar qualquer um. Quase não havia censura”, diz Roderick MacFarquhar, professor de história e ciência política da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. O profeta dos rebelados de 1968 era o filósofo alemão Herbert Marcuse (1898-1979). Exilado nos Estados Unidos, ele preconizava que um ato violento cometido por uma minoria oprimida não inicia uma nova corrente de violência, mas interrompe a anterior.
A desobediência pacífica que marcou os protestos dos anos anteriores já não era mais suficiente para dar vazão aos anseios por mudança. A luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, por exemplo, que obtivera resultados transformadores com a lei de 1964 (ampliados em 1965 e 1968) que proibiu a discriminação com base em raça, sexo, cor, religião ou nacionalidade, ganhara contornos paramilitares com o Partido dos Panteras Negras, que surgiu como resistência armada à brutalidade policial contra a população negra — o mesmo tema do atual movimento Black Lives Matter (“Vidas negras importam”, em inglês). Para não deixar dúvida dessa inflexão radical, quis a história que duas vozes moderadas em favor dos direitos civis se calassem em 1968: a do reverendo Martin Luther King, assassinado por um delinquente racista em abril, e a do candidato presidencial democrata Robert Kennedy, morto por um radical palestino em junho. A perda para a política americana foi enorme. Ambos haviam adotado uma posição clara pelo fim da Guerra do Vietnã, algo que só veio a se concretizar sete anos depois.
O repúdio à intervenção americana no Vietnã, mais do que qualquer outra causa, era o que unia a rebeldia de diferentes nacionalidades e tendências políticas. A onda de protestos estudantis de 1968, aliás, começou em fevereiro, com um congresso sobre o Vietnã em uma universidade berlinense — poucos dias depois de as forças do norte comunista terem lançado a Ofensiva Tet, uma das mais sangrentas do conflito, que expôs definitivamente as feridas da guerra. Na ocasião, sob uma bandeira vietcongue, o líder estudantil Rudi Dutschke (1940-1979) encerrou o discurso principal, para delírio da plateia, com as seguintes palavras: “Viva a revolução mundial e a sociedade e os indivíduos livres que dela resultarão!”. Em seguida, dezenas de milhares de estudantes foram às ruas de Berlim. Dois meses mais tarde, Dutschke sobreviveu, com graves sequelas, a uma tentativa de assassinato cometida por um neonazista, que disparou três tiros contra sua cabeça. O atentado causou grande impacto em Daniel Cohn-Bendit, um jovem franco-alemão que dias depois lideraria o levante universitário na França e, com sua calça Lee e seu megafone, se tornaria o arquétipo do “revolucionário estudantil”.
Mas que revolução era essa que a juventude rebelada tanto almejava? Para Dutschke, ela deveria ser essencialmente antiautoritária, mas ele se recusava a apresentar uma utopia concreta para a sociedade. Cohn-Bendit foi confrontado por questão idêntica — e por ninguém menos que o filósofo Jean-Paul Sartre (1905-1980). Em entrevista publicada em 20 de maio na revista Le Nouvel Observateur, Sartre perguntou a Cohn-Bendit por que ele não elaborava um programa político. De que adiantava “quebrar tudo” sem saber o que pôr no lugar? Cohn-Bendit respondeu que a força do movimento de maio em Paris era justamente sua “espontaneidade incontrolável”.
A razão para a ausência de propostas concretas era condizente com o contexto em que a juventude de 1968 cresceu. Do ponto de vista das conquistas materiais, não havia do que reclamar. Foram duas décadas de grande crescimento econômico no Ocidente. Nos Estados Unidos, a porcentagem de famílias negras que viviam na miséria caiu pela metade. As taxas de desemprego na Alemanha e na França eram inferiores a 2%. Nunca tantos jovens ganharam acesso ao ensino superior. A França tinha, logo após a II Guerra, 100 000 estudantes universitários. No fim da década de 60, eram mais de 600 000. Os jovens de 1968 não eram, em sua maioria, despossuídos exigindo mais acesso a recursos. Eles estavam pegando a liberdade que lhes havia sido dada e queriam mais. “Não era um chamado à revolução, apesar de sua retórica, mas sim um movimento por reformas rápidas e pessoais dentro das estruturas sociais e políticas existentes”, escreveu Jeremi Suri, professor de história da Universidade do Texas, em Austin, em artigo publicado em 2009. A insatisfação da geração da contracultura era fruto do contexto de competição ideológica da Guerra Fria e da ameaça de aniquilamento nuclear mútuo, que instigavam os jovens a buscar sentido para sua vida além das necessidades materiais básicas.
Nenhum governo foi derrubado pelos movimentos estudantis de 1968, e as estruturas políticas permaneceram como eram. Mas, pela primeira vez, surgiu uma cultura jovem global. A juventude deixou de ser simplesmente um estágio de transição para a idade adulta e passou a definir padrões por conta própria. A contracultura conectou a crítica do comportamento social à política. E, com isso, legou para a atualidade o ideal de contestação dos modelos vigentes e de disrupção que tanto se exalta na era digital — que, não por acaso, foi construída por ex-hippies tardios como Steve Jobs, o fundador da Apple, que tinha 13 anos em 1968. Questionar o próprio poder e rever constantemente a maneira de fazer as coisas são formas de não sucumbir ao conformismo e de não ser superado pelo novo que pode surgir de qualquer outro lugar. No fim, ironicamente, os revolucionários de 1968 inauguraram um período de mudanças contínuas nos paradigmas do capitalismo e da sociedade de consumo como um modo de manter o próprio capitalismo e a sociedade de consumo. Uma das frases pichadas nos muros de Paris, há cinquenta anos, bem que poderia servir de slogan para as empresas do atual mundo digital: “A fantasia no poder”.
Com reportagem de Luiza Queiroz
Publicado em VEJA de 3 de janeiro de 2018, edição nº 2563