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A África na história do presente

Após séculos em que se tentou negar que os negros tivessem um passado, já é hora de os estudantes conhecerem o espírito criativo dos africanos

Por Alberto da Costa e Silva*
Atualizado em 4 jun 2024, 19h10 - Publicado em 17 nov 2017, 06h00
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(//VEJA)

Em 1324, durante sua peregrinação a Meca, Mansa Musa, o rei do Mali, na África Ocidental, contou no Cairo que seu antecessor estava convencido de que o oceano possuía, como os rios, uma outra margem e que era possível chegar até ela. Para isso, aprestou 200 embarcações e mandou-as na direção do ocidente. Só um dos barcos voltou, para contar que os demais tinham sido engolidos pelo mar. Inconformado, o antigo rei ordenou que se preparasse outra frota, de 2 000 canoas. E, depois de passar o poder a Mansa Musa, embarcou numa delas. Não se soube mais dele. Se tivesse chegado às praias ocidentais do oceano e delas retornado, teria descoberto a América para o mundo islâmico, como Colombo faria, quase 200 anos mais tarde, para a Europa cristã.

Poucas décadas haviam se passado desde a chegada de Cabral a Porto Seguro quando desembarcaram em nossas terras africanos escravizados. Na mão inversa, o século XVI não terminaria sem que se observasse a presença no reino do Congo de caboclos brasileiros.

Mais depressa do que os homens, atravessaram o Atlântico — e ganharam o interior da África — vegetais levados do Brasil, como o milho e a mandioca, que, na passagem do século XVI para o XVII, começavam a mudar radicalmente a dieta de povos africanos. Em contrapartida, espalharam-se pelo território brasileiro, trazidos da África, entre muitas outras árvores, o coqueiro e a mangueira. E, com a troca de vegetais, foram ficando semelhantes as paisagens nas duas margens do oceano.

Quando os holandeses, que ocupavam parte do Nordeste do Brasil, enviaram, em 1641, uma esquadra para conquistar Luanda, a atual capital de Angola, e garantir o acesso à mão de obra escrava, levaram com eles três companhias de “brasilienses”, sendo 200 ameríndios. Já nas expedições saídas do Brasil para retomar Luanda aos holandeses, seguiram não só ameríndios, mas também soldados negros, africanos e crioulos, ou aqui nascidos.

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Da metade do século XVII à terceira década do XIX, cresceu o número de comerciantes vindos do Brasil que se instalavam em Luanda e em Benguela, no sudoeste da atual Angola. Com sócios poderosos no Rio de Janeiro, eles ajudavam a controlar o tráfico de cativos e faziam de Angola praticamente uma colônia do Brasil. Algo parecido se passava com Ajudá, na atual República do Benim, onde o forte português de São João Baptista de Ajudá dependia do governo da Bahia.

Em Ajudá e em várias outras cidades do Golfo do Benim, os mercadores oriundos do Brasil juntavam-se em bairros próprios, negociavam diretamente com os reis africanos, envolviam-se na política, tomavam partido nas guerras locais e fundavam cidades. Ao contrário do que sucedia em Angola, poucos se tinham por brancos. Muitos eram ex-escravos, e alguns prosperaram no comércio de gente.

Um desses mercadores vindos do Brasil dominou o tráfico no Golfo do Benim por quase meio século: o mestiço baiano Francisco Félix de Souza, o Chachá. Grande amigo de Guezo, o rei do Daomé, hoje República do Benim, a quem, em 1818, ajudou a pôr no trono, tornou-se um dos homens mais ricos de seu tempo. Ao dar-se a independência brasileira, ele teria oferecido a dom Pedro I, em nome de Guezo, o senhorio sobre o forte de São João Baptista de Ajudá.

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Não passou despercebida na África a independência do Brasil. Nas possessões portuguesas de Angola e Moçambique, e com muita força em Benguela, surgiram movimentos favoráveis à união com o Império brasileiro. E pelo menos dois soberanos africanos, Osinlokun, o ologun ou rei de Onim — ou Lagos, na Nigéria —, e seu suserano, o obá ou rei do Benim, Osemwede, enviaram, em 1823, um embaixador ao Rio de Janeiro para reconhecer a independência do Brasil.

As notícias cruzavam, rápidas, o oceano. Em Lagos e em outras cidades da costa africana, comemorou-se a coroação de dom Pedro II, acompanhou-se a guerra do Paraguai e festejou-se nas ruas a abolição da escravatura.

Pode parecer contraditório que Lagos tenha explodido de alegria ao saber do 13 de Maio. Mas nela e em outras cidades do Golfo do Benim mudara a composição das comunidades brasileiras. Aos traficantes de almas e seus descendentes se haviam agregado negros libertos e livres que se sentiram sem futuro no Brasil e decidiram refazer a vida na África. Como se haviam tornado mestres de obra, marceneiros, alfaiates e costureiras à europeia ou sabiam ler e escrever, prosperaram, ao oferecer seus serviços aos britânicos, franceses e alemães que o colonialismo trazia para a África, e ao exportar para o Brasil panos da costa, dendê e noz-de-cola e dele importar carne-seca, tabaco e aguardente.

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O que se passava num lado do oceano muitas vezes repercutia no outro. Como as guerras, os conflitos políticos e as razias eram responsáveis pelo grosso dos escravizados, dos acontecimentos africanos dependiam até mesmo a expansão demográfica e a ocupação do território brasileiro. E não se esqueça de que eram esses acontecimentos que determinavam, em cada momento, de quais regiões procediam os cativos trazidos à força para o Brasil. Com eles desembarcavam diferentes idiomas, objetos, técnicas, costumes, tradições, festas, crenças e valores, pois, a não ser na cabeça de um branco desavisado, os grupos étnicos eram bem definidos: um axante não se confundia com um iaca, um macua com um libolo, nem um ijexá com um bariba. A chegada em grandes números de muçulmanos escravizados à Bahia, na primeira metade do século XIX, por exemplo, seria consequência do jihad de Usman dan Fodio (1754-1817), poeta, erudito e líder religioso do Califado de Sokoto, que teve seu epicentro no norte da atual Nigéria.

Boa parte da história do Brasil começa na África. Numa África dotada de história, de uma história fascinante, que, como as outras de que igualmente somos herdeiros, quanto mais antiga, mais nos fala pelas suas obras de arte. Após quatro séculos durante os quais se procurou negar que o negro tivesse um passado, já é mais do que tempo de enriquecer o acervo de beleza que oferecemos nas escolas aos nossos jovens com as estelas de Axum e as igrejas talhadas na rocha de Lalibela, na Etiópia; o Grande Zimbábue; as requintadas vasilhas de bronze de Igbo Ukwu, as cabeças de terracota e de ligas de bronze de Ifé e as placas de bronze do Benim, produzidas onde hoje é a Nigéria; as joias de ouro dos axantes da atual República de Gana; as tensas esculturas em madeira dos lubas e as reinvenções do rosto humano que são as máscaras songyes, da atual República Democrática do Congo, e tantas outras grandes obras que devemos ao espírito criador dos africanos.

* Historiador e poeta, membro da Academia Brasileira de Letras (cadeira número 9). Publicou, entre outras obras, A Enxada e a Lança: a África Antes dos Portugueses, A Manilha e o Libambo: a África e a Escravidão, de 1500 a 1700 e Um Rio Chamado Atlântico — A África no Brasil e o Brasil na África

Publicado em VEJA de 22 de novembro de 2017, edição nº 2557

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