Pesquisa inédita mostra desconexão entre os fiéis e a Igreja Católica no Brasil
Estudo conduzido pela MindMiners a pedido de VEJA indica um desafio e tanto para o novo papa

Atribui-se ao missionário holandês Júlio Maria de Lombaerde, que desembarcou no ano de 1912 em Pernambuco para espalhar o evangelho pelo Brasil, uma frase que resumiu com ênfase o papel da religião na identidade nacional: “Um ideal de pátria brasileira sem a fé católica é um absurdo histórico e uma impossibilidade política”, dizia o respeitado padre. Naquele início do século XX, a afirmação ganhava contornos de postulado. O país era então essencialmente agrário, governado por barões do café, distante das revoluções culturais que agitavam a Europa — e tinha na Santa Sé farol inabalável.
O mundo deu profundas voltas, sacudindo costumes, mudando anseios e abrindo novas portas para o exercício da fé, o que se refletiu no mais alto grau em solo brasileiro, onde ainda se concentra a maior população católica do planeta, de extraordinários 120 milhões de fiéis. O rebanho, porém, anda encolhendo em ritmo acelerado — fenômeno que encontra eco mundo afora e mobiliza as engrenagens no Vaticano, agora liderado pelo americano Robert Prevost, o recém-ungido papa Leão XIV.
Uma pesquisa inédita encomendada por VEJA à MindMiners, empresa especializada em sondagens on-line, ouviu brasileiros que se declaram católicos, egressos das classes A, B e C e de todas as idades e regiões, para decifrar o que procuram na Igreja e como a enxergam em tempos tão chacoalhados pela modernidade. O retrato que emerge do levantamento, realizado depois da fumaça branca em Roma, dá exata dimensão ao que, até aqui, eram apenas impressões esparsas, extraídas do cotidiano: a maioria (55%) se define como “não praticante” e vive longe da liturgia, sem cultivar o hábito de entrar em um templo para exercer a fé (64%) nem ir à missa com regularidade (72%).
A sondagem, aliás, aponta para um abismo entre a visão dos fiéis sobre o mundo em transformação à sua volta e o que prega a Igreja, assentada sobre dogmas milenares. Apenas um de cada quatro entrevistados se enquadra como conservador e uma fatia minoritária se opõe a temas da agenda dos costumes que a religião segue condenando, como uso de pílula anticoncepcional, casamento gay e aborto (leia o quadro). “Trata-se de um catolicismo que continua presente e relevante, mas que está se tornando plural e mais questionador”, diz Danielle Almeida, coordenadora da aferição.
É com essa multidão que já não se sente tão ligada às engessadas estruturas eclesiásticas e sai em busca de respostas em credos diversos, ou em nenhum, que Leão XIV terá de estabelecer conversa daqui para frente. O recuo no contingente católico vem sendo notado há décadas na Europa e na América Latina — onde, aliás, o novo pontífice selou laços nos tempos em que serviu no Peru, vantagem na duríssima tarefa de tentar reverter o declínio em marcha. O alento vem apenas de países africanos e asiáticos, nos quais ainda se avista certo avanço do catolicismo. O Brasil é o caso mais emblemático da debandada. Em 1940, data do primeiro Censo do IBGE, a turma que se definia católica cravava 95% da população, mas a partir dos anos 1980 o número foi caindo, caindo, até que o mais recente levantamento, de 2010, indicava uma proporção de 64%. A seguir o ritmo de hoje, em 2032 os evangélicos serão a maioria no Brasil (39,8% versus 39,6% de católicos), segundo respeitadas projeções do demógrafo José Eustáquio Alves.
São alertas contundentes de que é preciso sacudir a poeira nas paróquias, de modo a arejar a instituição — o que, aos olhos de um grupo de católicos, o papa Francisco, antecessor do atual ocupante do Trono de Pedro, conseguiu. “Ele gerou conflitos, mas nos acolheu como nenhum papa até agora fez”, diz o arquiteto Pablo Moreira, 27 anos, bissexual, que celebrou a bênção que passou a ser autorizada a casais gays por instrução de Francisco. Muitos outros tópicos sujeitos a controvérsias, contudo, como a própria união de pessoas do mesmo sexo e a ordenação de mulheres no sacerdócio, persistem como tabu. Os moldes ainda rígidos das celebrações são também um fator que espanta o rebanho. “Não tenho muita paciência para ir à missa. É um tal de senta e levanta. Muita coisa do que o padre fala não faz sentido para mim”, afirma a dona de casa Roberta Magalhães, 58 anos, que prefere “conversar com Deus em minhas próprias orações”.

Razões demográficas contribuíram de forma decisiva para uma completa mudança de perfil da sociedade brasileira, o que se refletiu fortemente em queda da adesão ao catolicismo. A partir dos anos de 1950, a população foi deixando de ser majoritariamente rural para se tornar mais urbana, virada registrada em apenas três décadas. Ao se instalar nas periferias das grandes cidades, essa imensa massa que brotava ali à procura de vida melhor esbarrou com igrejas que pouco dialogavam com suas aspirações e, não raro, enveredavam por rota oposta. “Ter uma família numerosa e conformada com a baixa possibilidade de prosperar deixou de fazer sentido em uma sociedade moderna”, afirma Eustáquio Alves.
Enquanto a Cúria Romana perdia o bonde da história, as denominações evangélicas expandiam seus domínios de forma estratégica, instalando-se em garagens, cinemas e galpões abandonados, garantindo espaço em zonas populosas e carentes. “As correntes pentecostais e neopentecostais atrelaram o exercício religioso a uma prática coletiva e comunitária, o que a Igreja católica foi deixando de fazer”, diz o filósofo Mario Sergio Cortella. Sob essa moldura, não espanta que 27% da amostra ouvida pela MindMiners cogite, em algum momento, migrar do catolicismo para alguma outra religião — 61% deles para as fileiras evangélicas.

Historicamente, como ocorreu em boa parte da América Latina, a resposta no Brasil ao acelerado avanço protestante veio na forma de uma tentativa de trazer a Igreja mais à terra firme, iniciativa encampada pela Teologia da Libertação a partir do fim dos anos 1960, em plena ditadura militar, aliando o marxismo ao evangelho. Nas chamadas comunidades eclesiais de base, os padres promoviam discussões de cunho político, com o declarado propósito de despertar uma “consciência de classe”. O efeito colateral foi afugentar uma porção do rebanho que não queria ser deslocada do plano celestial nem tampouco se identificava com o púlpito de coloração esquerdista. Em meio à Guerra Fria, João Paulo II, o pontífice anticomunista, chegou a enviar ao país, em 1985, o então cardeal alemão Joseph Ratzinger, que se tornaria seu sucessor como Bento XVI, justamente para desarticular essa ala que, para ele, era evidente obstáculo para a fé genuína.
Por estímulo de João Paulo II, pontífice de pendor populista, o “João de Deus”, que beijava o chão dos lugares por onde passava, a Igreja foi ganhando corpo no Brasil — apenas nas últimas três décadas, a quantidade de clérigos saltou 34% e as paróquias e dioceses quase dobraram de número, ultrapassando os 12 000 templos. Mas aí deu-se o fenômeno sobre o qual o antropólogo Rodrigo Toniol, da UFRJ, se debruça: “Quanto mais a Igreja se institucionalizou, mais perdeu seguidores”, diz.

Sinal de haver trabalho de sobra pela frente para Leão XIV, que, na ótica dos brasileiros, deve equilibrar-se na finíssima linha entre tradição e mudança — é, ao menos, ao que aspiram 54% dos ouvidos na pesquisa encomendada por VEJA. “Espero um líder que olhe mais para Deus do que para as manchetes”, diz Pietra Bertolazzi, 39 anos, que engrossa a turma dos influencers tradicionalistas do catolicismo, universo ruidoso na internet. A única certeza no horizonte do novo pontífice — e da Igreja — é que a vida nos próximos tempos não será nada fácil.
Publicado em VEJA de 16 de maio de 2025, edição nº 2944