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Papa Francisco põe à mesa assuntos tabu para atrair um rebanho que encolhe

Sínodo dos Bispos, espécie de órgão consultivo do pontífice com o objetivo de traçar os rumos da Igreja, se encerra no domingo 29

Por Amanda Péchy 28 out 2023, 08h00

Em seus 2 000 anos de existência, a Igreja Católica, instituição fincada sobre dogmas e tradições, precisou dar uma chacoalhada para manter-se viva e atraente. Pois este século XXI, tomado pela efervescência de profundas transformações nas relações humanas, é um desses momentos que impõem uma reflexão sobre como fazer as milenares palavras cravadas nas Escrituras ter um sentido verdadeiro a quem as segue. Um sinal amarelo acendeu-se nos últimos anos diante de números que revelam um declínio de católicos em pontos do planeta em que historicamente formavam um contingente inabalável, como na América Latina, onde a população que se identifica assim caiu de 70% para 57% em uma década, situação semelhante à dos Estados Unidos e à de países europeus. É nesse cenário que o papa Francisco, que assumiu as rédeas do Vaticano em 2013, após a renúncia de Bento XVI, ensaia um sopro de renovação, tocando em assuntos tabu que abrem uma fresta para uma mudança sobretudo de tom, de modo que a igreja não se ponha de costas aos incontornáveis ventos da modernidade.

O debate se intensificou nestes dias com o Sínodo dos Bispos, espécie de órgão consultivo do pontífice com o objetivo de traçar os rumos da Igreja, que se encerra no domingo 29. Esta edição contém alguns ineditismos — a começar pela pauta recheada de tópicos polêmicos, que o próprio papa pôs à mesa. A lista inclui celibato, padres casados, bênção a uniões gays e a ascen­são de mulheres na hierarquia eclesiástica (elas, aliás, são novidade no grande encontro).

APOIO - Manifestantes vão às ruas: bandeiras em prol da agenda progressista
APOIO - Manifestantes vão às ruas: bandeiras em prol da agenda progressista (Riccardo De Luca/Anadolu/Getty Images)

Pela primeira vez, os itens que mobilizam as 365 cabeças com direito a voto, entre bispos e leigos (também novidade), foram pinçados a dedo depois de dois anos de pesquisa conduzida pelos principais conselheiros de Francisco em igrejas mundo afora, justamente para escutar de quem pratica o catolicismo no dia a dia sobre os temas que mais afligem seu rebanho. Resultou em um documento de trabalho para nortear o sínodo, no qual martela-se a necessidade de a Igreja se fazer mais inclusiva, abrangendo aí a comunidade LGBTQIA+. “Não é que a atual agenda tenha um olhar progressista por causa de Francisco, mas ela só poderia se apresentar desta forma em um papado mais aberto a conversas difíceis”, avalia a americana Michele Dillon, autora de Catolicismo Pós-Secular: Relevância e Renovação.

Que não se confunda a face humana do jesuíta argentino Jorge Mario Bergoglio, sensível às mazelas e angústias individuais, com um suposto pendor para remexer preceitos seculares da instituição que rege. Na verdade, ele abraça a doutrina, mas, diferentemente da imensa maioria dos antecessores, está com os ouvidos abertos ao mundo em que vive e, pragmático que é, sabe que não pode fechá-los a questões que batem à porta. Já defendeu o acolhimento de homossexuais (“se uma pessoa é gay quem sou eu para julgá-la?) e de mães solteiras (“essa mulher teve a coragem de continuar a gravidez”), admitiu o divórcio (“existem casos em que a separação é inevitável”) e cutucou o vespeiro do assédio (“nunca mais nenhum tipo de abuso deve acontecer, fora ou dentro da Igreja”). Não raro, vai e volta em declarações que inflamam as labaredas, mas planta ideias que, em ritmo vagaroso, vão ganhando eco. “A Igreja não tem pressa. O papa está pensando a longo prazo”, afirma Harvey Cox, especialista em religião da Universidade Harvard.

FUTURO À VISTA - O pontífice nomeou uma centena de cardeais de sua confiança: cabe a eles escolher o próximo papa
FUTURO À VISTA - O pontífice nomeou uma centena de cardeais de sua confiança: cabe a eles escolher o próximo papa (Franco Origlia/Getty Images)

Em meio à expectativa de que temas espinhosos viessem à luz, o sínodo agitou Roma com manifestações variadas — de mulheres excomungadas que protestam pelo direito de, também elas, serem padres a palestras em que cardeais conservadores ergueram a voz contra o papa. Ninguém espera que saia dali um documento revolucionário, até porque o texto, que deve ser divulgado nas próximas semanas, precisa ter 100% de aceitação e, como se sabe, há por lá representantes de incontáveis matizes e correntes. De antemão, é possível distinguir os tópicos com alguma chance de emplacar daqueles de maior complexidade — a ordenação de mulheres entre eles. Em 2016, o Vaticano criou uma comissão para estudar o papel feminino no clero mergulhando no cristianismo primitivo, mas Francisco foi contrário à ideia de mulheres se tornarem padres, expondo argumentação de cunho teológico. Por outro lado, antes da cúpula, o pontífice se mostrou flexível em relação à bênção a casais homossexuais (sem uni-los em matrimônio) e deu sinais de que, frente à escassez de sacerdotes em áreas remotas, pode avaliar o pleito de homens casados virarem padre.

Embora tudo ainda habite o terreno das especulações, o mais certo é que o documento repise a urgência de a Igreja contemplar seguidores cada vez mais diversos. A própria composição do sínodo, ao mesclar religiosos e leigos, já é um passo à frente, sinalizando para um horizonte em que as decisões sejam ao menos influenciadas de baixo para cima. “É o ponto alto da batalha de Francisco contra o clericalismo, uma mudança concreta na estrutura do poder no Vaticano”, observou a VEJA o historiador italiano Massimo Faggioli, um dos grandes pensadores do catolicismo. É verdade que falta chão — 75% dos integrantes do encontro são bispos. Mas os leigos que ingressaram agora, apontados pelo próprio pontífice entre proeminentes nomes ligados a congregações de toda a parte, e a presença de 54 mulheres são um inequívoco indicador de avanço. “Buscamos criar um novo estilo de igreja, em que não podemos excluir ninguém”, disse a VEJA a freira francesa Nathalie Becquart, subsecretária do sínodo, cargo mais alto ocupado por uma mulher no Vaticano, que vive ao pé do ouvido do papa.

AVANÇO - Nathalie Becquart, conselheira de Francisco: mulheres ganham lugar
AVANÇO - Nathalie Becquart, conselheira de Francisco: mulheres ganham lugar (Abaca Press/Alamy/Fotoarena/.)

Era esperado que tamanha sacudida nas placas tectônicas do Vaticano provocasse as fileiras mais conservadoras. Cinco cardeais logo fizeram barulho ao endereçar uma carta ao papa pedindo explicações sobre sua posição quanto à ordenação de mulheres e à bênção a casais gays. Ainda pediram que Francisco esclarecesse se a doutrina da Igreja poderia, afinal, ser “reinterpretada”. Bem ao seu estilo, expondo a filosofia que essencialmente o define, Francisco respondeu: “Depende do significado que você dá à palavra reinterpretar. Se for entendido como interpretar melhor, então é válido. O julgamento da Igreja pode amadurecer”. O papa que no passado atuava nas favelas de Buenos Aires e confrontou a ditadura argentina tem oratória afiada e cultiva a polêmica, mas não é dado ao embate, daí às vezes recuar. “Ele é o mestre do equilíbrio”, resume o historiador Victor Gama, da PUC Minas.

Em outros momentos da história, a Igreja se viu às voltas com o vendaval da mudança ao redor e precisou agir. Nos anos 1960, João XXIII acabara de assumir o Trono de Pedro quando convocou o Concílio Vaticano II, um marco na modernização litúrgica e doutrinal. Como agora, a busca era por uma Igreja mais simples e afinada com seu rebanho, o que foi concretamente alcançado com a decisão de acabar com a exigência das missas em latim e estimular que fossem celebradas no idioma falado pelos fiéis. Seu sucessor, Paulo VI, que viria a concluir a guinada, foi o primeiro chefe da Santa Sé a visitar os cinco continentes e não cerrou os olhos ao mundo em marcha rumo à globalização nem à revolução sexual que sacudia o planeta. “A Igreja precisa se renovar para sobreviver, por isso deve ser pragmática”, reforça Victor Gama.

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VIRADA - João XXIII nos anos 1960: o Concílio Vaticano II foi um marco na modernização litúrgica e doutrinal
VIRADA - João XXIII nos anos 1960: o Concílio Vaticano II foi um marco na modernização litúrgica e doutrinal (./AFP)

Francisco é dado a emitir opinião por vezes fortes e politizadas sobre o que se passa em seu entorno — guerras, miséria e até política — e vem demonstrando disposição para tratar de assuntos que põem o Vaticano na berlinda. O atual sínodo, envolto em temas complicados, é um capítulo a mais numa trajetória em que o pontífice encarou a própria corporação que lidera ao reformar o Banco do Vaticano, enredado em crimes financeiros, e abordar a pedofilia de sacerdotes, criando uma comissão interna, auditando igrejas e modernizando o código penal da cúria.

Aos 86 anos e com inúmeros problemas de saúde, o papa dá sinais de apressar o passo para conter a diminuição de fiéis e deixar um legado. Já entrou para a história como o maior fazedor de santos do catolicismo, o que alimenta a liturgia. Também pôs nomes de sua confiança em 99 das 137 vagas para cardeais, justamente os responsáveis por eleger o próximo pontífice. A composição é mais heterogênea hoje, com a chegada de religiosos africanos e latino-americanos, que conquistam espaço em um universo predominantemente europeu. O sínodo, sobre o qual tem a palavra final, pode ser outra de suas contribuições — pelo menos deixará frutificando ideias que, em seu conjunto, miram uma Igreja menos engessada e mais inclusiva. Ele está bem ciente do ritmo com que o mundo eclesiástico gira. Certa vez, a propósito, lembrou uma emblemática frase do arcebispo belga Frédéric François Xavier de Mérode (1820-1874), conselheiro do papa Pio IX: “Fazer reformas em Roma é como limpar a esfinge do Egito com uma escova de dentes”. Poucas pessoas sabem disso tão bem quanto Francisco.

Publicado em VEJA de 27 de outubro de 2023, edição nº 2865

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