Morte do papa Francisco deixa legado de simplicidade e impõe dilema à Igreja Católica
Despedida abre dúvida sobre a eleição ou não de um sucessor como ele, que economizava nos hábitos e esbanjava na disposição de arejar o catolicismo

“Caros irmãos e irmãs, boa Páscoa.” Não poderia haver nada mais simbólico, em momento fadado a fazer história, do que as últimas palavras do papa Francisco, em voz fraca e respiração entrecortada, em italiano, dita na missa de domingo, 20 de abril, na Praça São Pedro. Na manhã seguinte, menos de 24 horas depois, a Santa Sé anunciaria a morte de Jorge Mario Bergoglio, aos 88 anos. A causa foi um AVC, seguido de colapso cardiovascular. O pontífice se recuperava de uma dupla pneumonia e de sucessivas infecções respiratórias que o mantiveram durante 38 dias internado no Hospital Gemelli. Fragilizado, retornou ao quarto singelo da Casa Santa Marta, entre os muros do Vaticano. Coube ao camerlengo, o americano Kevin Joseph Farrell, na figura de chefe da Igreja no período de vacância, fazer o anúncio ao mundo, diante das câmeras de TV. “Às 7h35 desta manhã, o bispo de Roma, Francisco, retornou à casa do pai. Toda a vida dele foi dedicada ao serviço do Senhor e da Igreja. Ele nos ensinou a viver os valores do Evangelho com fidelidade, coragem e amor universal, especialmente em favor dos mais pobres e marginalizados.”
O mandato do papa jesuíta argentino durou pouco mais de doze anos. Do ponto de vista da história do catolicismo é quase nada. Para o mundo de hoje, porém, premido pela velocidade da internet e pela estupidez das polarizações ideológicas, atalho para o preconceito, representou uma saudável eternidade. Talvez como nenhum outro, o “papa simples”, como chegou a ser alcunhado depois de erguer os braços na varanda central da basílica romana em 13 de março de 2013, tratou de questões terrenas — e esse aspecto, a um só tempo comezinho e corajoso, é que o distingue de seus antecessores. Não que ele tenha rompido com os pilares da Igreja, um anátema impossível, e não haveria mesmo como fazê-lo, ao bulir com regras de dois milênios.

Ainda que não tenha sido o primeiro a provocar terremoto — João XXIII, nos anos 1960, chacoalhou os alicerces ao abandonar, inclusive, as missas em latim e autorizar os padres a virar de frente para os fiéis —, foi o pioneiro no tempo de redes sociais, o nosso, em que tudo corre muito mais rapidamente, inclusive a lentíssima movimentação a ritmo de tartaruga da religião dos discípulos de Pedro. Francisco tocou em quase todos os temas de intenso debate. Não é o caso de dizer que houve avanços extraordinários — não houve —, mas a firme mudança de tom precisa ser celebrada, e nesse aspecto há quem compare sua trajetória com a de João XXIII, “o papa bom”. O barulho de Francisco faz bem para a civilização, ainda que as portas abertas por ele cismem em fechar-se, por forças dentro e fora da Igreja atreladas ao conservadorismo. Na Argentina, por exemplo, o populista de direita Javier Milei chegou a chamá-lo de “demônio”, embebido da briga política na terra natal de ambos.
A passagem de Francisco impõe uma pergunta: qual será o futuro da Igreja depois dele? Não há resposta de um único tom. Convém, antes de mais nada, para compreender os passos do papa a caminho do amanhã, estabelecer a diferença entre dogmas e doutrinas. Os dogmas nunca serão cancelados ou descartados, embora possam ser ajustados ao longo do tempo. As doutrinas, sim, são alteradas, e foi o que ocorreu. Tratam, de modo geral, de moralidade, de questões comportamentais e de economia das sociedades, ao feitio de um manual de etiqueta. Nesses campos, o papa representou oxigênio vital. Em um dos sínodos de seu tempo, incluiu leigos com direito a voto igual ao dos bispos, ao enfatizar o chamado sensus fidelium, o papel de gente comum nos ensinamentos oficiais. “Para estabelecer com segurança o legado de um pontífice seria preciso esperar 100 anos”, disse a VEJA o teólogo James Heft, da Universidade de Dayton, nos Estados Unidos. “Mas ao abrir discussões ao redor de assuntos delicados, tabus inalcançáveis, Bergoglio inaugurou um capítulo real da vida da Igreja daqui para a frente. Como diria minha saudosa mãe, uma vez que a pasta de dente está fora do tubo, é difícil colocá-la de volta.”

Atento às dificuldades, depois que saísse de cena, ele próprio pavimentou a estrada, na tentativa de encaminhar a Igreja ao modo como a imaginava para as próximas gerações. Com ele, a divisão tradicional entre congregações e conselhos, em que as primeiras reuniam a elite do clero e a segunda era relegada a sacerdotes de menor influência, foi abandonada, por ultrapassada. Em seu lugar, surgiram os dicastérios (tribunais, em grego). A função primária da Cúria deixou de ser burocrático-administrativa e passou a ser essencialmente pastoral, atuando em apoio à missão dos bispos.
E mais: em passo calculado, o colégio cardinalício que indicará o ocupante do Trono de Pedro foi cuidadosamente escolhido por Francisco, em movimentos que não chegam a ser ardilosos como os de Conclave, o sucesso de Hollywood, mas longe não passam. Os bastidores da Santa Sé são cruéis, e Francisco soube percorrê-los. Dos 135 cardeais aptos a votar, embora possa haver uma ou outra baixa por problemas de saúde, 108 foram diretamente designados por ele. No restante, há 22 indicados por Bento XVI e cinco por João Paulo II (veja no quadro). O grupo, que até 2013 era fundamentalmente europeu, agora tem composição heterogênea, com a chegada de africanos e latino-americanos. Há, no contingente, sete brasileiros. Existe, como de hábito, porque é ele quem faz o monge, risco de traições e desobediências, mas é como se o papa que se foi pudesse controlar o escrutínio a caminho da fumaça branca. A ideia: ter alguém como ele, de mente aberta para questões como o acolhimento da diversidade de gênero, a compreensão dos que se divorciaram ou tiveram de abortar, o respeito à atuação feminina, mas sem mexer uma única palha no manto dogmático da Igreja.

Existe, contudo, a possibilidade de o pêndulo ir para o outro espectro, conservador, em movimento natural da história da religião católica — ou então parar no ponto do meio, em algum nome conciliador (veja no quadro). Foi o que aconteceu, de algum modo, com a transferência do Anel do Pescador de João XXIII para Paulo VI, em 1963. “Católicos teologicamente conservadores temiam que seu progressismo pastoral pusesse a doutrina em risco. Portanto, é possível que os cardeais escolham alguém que reforce mais explicitamente a doutrina católica e os ensinamentos morais existentes”, diz Cristina Traina, especialista em ética católica da Universidade Fordham, de Nova York.
Para onde quer que aponte o resultado da escolha, que deve demorar ainda pelo menos duas semanas, talvez um pouco mais, uma sombra incômoda deve pairar na reclusão da Capela Sistina de Michelangelo: alguns dos cardeais foram acusados de envolvimento em escândalos sexuais, de pedofilia, e soa inaceitável que possam avançar nas votações antes de provar inocência. Francisco sabia disso, mas sempre teve noção da vagareza com que o mundo eclesiástico gira. Certa vez, a propósito, ele lembrou e riu (gostava de rir) de uma emblemática frase do arcebispo belga Frédéric François Xavier de Mérode (1820-1874), conselheiro do papa Pio IX: “Fazer reformas em Roma é como limpar a esfinge do Egito com uma escova de dentes”.

Um outro modo de imaginar a travessia é percorrer o que foi feito na última década. Francisco fez questão de escrever a respeito de sua missão com empenho — e evidente tradução para o povo comum, em volumes de evangelização do rebanho que encolheu nas últimas décadas. Lançou duas autobiografias e, por meio delas — além das homilias —, costurou a colcha de ideias. Não era um intelectual como o alemão Bento XVI, o papa emérito, o primeiro a renunciar em 600 anos, alegando dificuldades para descer ao subsolo dos problemas do Vaticano, incapaz de lidar com episódios de corrupção e pedofilia, embora tivesse fechado os olhos a diversos episódios. Bergoglio parecia ter deixado ontem a periferia de Buenos Aires.
A face empática, sensível a tormentas individuais, nunca significou, reafirme-se, pendor para menear preceitos seculares. Ele saiu em defesa da decisão de dar bênção a uniões entre pessoas do mesmo sexo, mas demarcou fronteiras. “O matrimônio é um dos sete sacramentos e prevê o casamento apenas entre homem e mulher. Isso é intocável”, escreveu ele, que considerava “pecadores” os que conduzem arranjos diferentes, embora os acolhesse. “Jesus ia ao encontro de gente que vivia nas periferias existenciais, e é isso o que a Igreja deveria fazer com a comunidade LGBTQIA+.” Em 2015, concedeu o perdão a grávidas que interromperam a gestação, sem diminuir a esperada e natural aversão ao ato: “O aborto é um homicídio, gesto criminoso”, anotou.

O que soava como gangorra era, na verdade, o caminho possível do poder de um homem cercado por intrincadas circunstâncias, que evidentemente permanecem depois de sua morte. O contingente de católicos declina em pontos do globo em que parecia inabalável, como no Brasil, e Francisco revelava ter consciência da missão de aliar a veia humanista ao pragmatismo, em postura que não pode ser jamais abandonada. Observador da marcha feminina, o argentino abriu janelas às mulheres nas engessadas estruturas eclesiásticas — a inédita presença delas no Sínodo dos Bispos de 2024, órgão consultivo da Santa Sé, representou salutar avanço.
Como então, agora, manter essa linha de progresso, caso ocorra retomada do tradicionalismo, o que não é impossível, embora improvável? Uma resposta: ser intransigente com o que não pode voltar para trás. Cutucar o vespeiro do abuso sexual infantil por sacerdotes, tema que Francisco encarou ao criar uma comissão interna para auditar igrejas e modernizar o código penal da Cúria, é compulsório. “Quem é considerado culpado por um tribunal deverá pagar sua pena”, anotou o papa, criticando clérigos bons de papo, mas incapazes de desatar o nó da hipocrisia. “Ele mudou as regras do jogo”, disse a VEJA o jornalista italiano Fabio Marchese Ragona, coautor de uma das autobiografias papais. “Nunca tinha visto um papa se encontrar com um embaixador pedindo para interromper uma guerra, como fez no caso da Ucrânia, por exemplo.” Nos últimos dias de vida, do leito do Hospital Gemelli, conversou por telefone com os responsáveis pela paróquia da Sagrada Família da Faixa de Gaza. Queria manter-se informado e apoiar uma causa que abraçou com especial empenho — sem deixar de condenar o terrorismo do Hamas e lamentar a postura agressiva de Israel. O próximo papa, se quiser ter mais fiéis, ou evitar evasão, precisa buscar essa direção, de frugalidade para conversar com quem abandonou os templos do catolicismo, em busca de diálogo (leia na coluna de Vilma Gryzinski). “O momento é incerto, diante dos inúmeros acontecimentos que marcam o cenário global. Ainda assim, a Igreja permanece como instituição dinâmica e resiliente”, diz Michele Dillon, socióloga da Universidade de New Hampshire e autora do livro Catholic Identity: Balancing Reason, Faith, and Power.

Desde o princípio, quando percebeu que caminhava para perder a paz íntima, feito papa por seus pares no conclave, Bergoglio rascunhou a trilha que seguiria — e da gênese participou Dom Cláudio Hummes (1934-2022), ex-arcebispo de São Paulo, amigo pessoal do portenho. O próprio Francisco contou como decidiu pela alcunha que o faria eterno, ao anúncio do nome ungido pelo conclave. Das páginas da autobiografia lançada em 2025: “O escrutínio é uma coisa um pouco chata de acompanhar; parece um canto gregoriano, só que com muito menos harmonia. Comecei a ouvir Bergoglio, Bergoglio, Bergoglio… o cardeal Cláudio Hummes, brasileiro, prefeito emérito da Congregação para o Clero, que estava sentado à minha esquerda, deu um leve tapa no meu ombro: ‘Não se preocupe, faça como o Espírito Santo’. Cheguei aos 69 votos e entendi. (…) Quando o meu nome foi pronunciado pela septuagésima vez explodiu um aplauso, enquanto a leitura dos votos continuava. Não sei quantos foram exatamente no final, não conseguia ouvir mais nada, o barulho encobria a voz do escrutinador. Nesse momento, enquanto os cardeais ainda aplaudiam e o escrutínio seguia, o cardeal Hummes, que estudara no seminário franciscano de Taquari, no Rio Grande do Sul, levantou-se e veio me abraçar: ‘Não se esqueça dos pobres’, disse-me. Aquela frase me marcou, eu a senti na minha carne. Foi ali que surgiu o nome Francisco”.

Seu sucessor, ao guiar o povo, tem de ser, sim, um pouco como ele — ao modo de um Francisco II. É bom, portanto, ficar com uma metáfora singela de Bergoglio, amante do futebol (torcia para o San Lorenzo, de Buenos Aires): “Jogar é um direito, e existe o sacrossanto direito de não ser campeão. Por trás de toda bola rolando sempre há um garoto com seus sonhos e suas aspirações, com seu corpo e seu espírito. Está tudo envolvido, não só os músculos, mas também a personalidade inteira em todas as dimensões, mesmo as mais profundas. De fato, quando alguém se empenha muito em alguma coisa, dizemos: ‘Está dando a alma’”. Assim foi Francisco, o papa que deu a alma em nome da justiça e da diversidade. Da humanidade de que a Igreja precisa se alimentar.
Publicado em VEJA de 25 de abril de 2025, edição nº 2941