Homem diz ter sido abusado por padre e revira caso dado por encerrado
O relato a VEJA traz de volta à tona uma situação que o próprio Vaticano já havia visto como acabada
Era agosto de 2019 quando um jovem de origem humilde cutucou os alicerces da Igreja Católica no Brasil ao trazer à luz sua dolorida história. Com riqueza de detalhes, Elissandro Dias Nazaré de Siqueira, 24 anos, acusava de estupro o padre Bartolomeu da Silva Paz, titular da tradicional paróquia de Monte Serrat, no bairro de Pinheiros, em São Paulo. Seu depoimento, revelado por VEJA, se referia a fatos que teriam ocorrido cinco anos antes e cavucou um vespeiro que vira e mexe assombra as sacristias: os inúmeros casos de abuso sexual a menores de idade cometidos por sacerdotes. A primeira reação da Cúria Romana, na defensiva, foi desacreditar o rapaz. Um processo canônico, instaurado pela Arquidiocese de São Paulo e que chegou ao Vaticano, concluiu que Bartolomeu e Eli, como o jovem é conhecido, mantiveram “um relacionamento consensual”. No início de 2020, o padre recebeu punição branda: três anos de suspensão e reclusão por mais um em uma casa de acolhimento para clérigos. Agora, uma nova denúncia de natureza semelhante revolve o caso, indicando que Bartolomeu pode ter cometido pelo menos um outro crime.
Desta vez, quem mostra o rosto e dispara contra o sacerdote é o promotor de vendas Wellington Carvalho Ribeiro de Jesus, 33 anos. Ele conta a VEJA que conheceu Bartolomeu em 2004, à época com 17 anos, apresentado por um amigo. Foi então convidado a passar o Natal junto a um grupo de padres. De madrugada, depois de comer e beber uns poucos copos de cerveja, Wellington sentiu-se mal e Bartolomeu, o anfitrião, sugeriu que fosse descansar em um quarto. O rapaz apagou e, segundo relata, só viria a despertar com o padre ajoelhado sobre seu corpo, imobilizando-o e beijando-o. “Ele estava nu, se masturbando, com o pênis próximo ao meu rosto. Tentou me penetrar, mas acabou ejaculando em cima de mim”, lembra ele, que, ainda enjoado, dormiu ali mesmo. Ao abrir os olhos no dia seguinte, só encontrou na casa uma empregada doméstica, que lhe ofereceu o café da manhã. Recusou e foi embora. Não prestou queixa à polícia nem esbarrou mais com Bartolomeu.
Como muitas vítimas de abuso, Wellington fechou-se em silêncio. “Tinha vergonha do que aconteceu. Mas, ao tomar conhecimento do drama de Eli, achei importante expor o meu, para que o padre não fique impune”, justifica. Seu depoimento foi acrescido em 11 de janeiro ao inquérito de Eli. Apesar de medidas penais não poderem ser aplicadas em seu caso, já que o crime prescreveu, ele enreda ainda mais o padre na investigação em curso. Veem-se semelhanças entre os dois episódios. Uma vez sozinho com Bartolomeu, Eli também ingeriu bebida alcoólica e apagou. De manhã, acordou com dores no ânus e sangue na cueca. Ele ainda conviveu com o padre por três anos, em uma relação que sua defesa classifica como “abusiva”. Além de prestar toda sorte de serviços gerais à igreja, Eli lixava os pés e cortava as unhas de Bartolomeu em um ritual que, de acordo com ele, terminava em sexo oral. Eram frequentes as trocas de mensagens em que o padre lhe pedia fotos nu e enviava imagens de suas nádegas. “Você quer dar?”, perguntava em uma delas, anexada ao inquérito.
O processo de Eli corre em segredo de Justiça na 10ª vara cível de São Paulo. Ele pede indenização por danos morais no valor de 5 milhões de reais e ainda acusa de omissão a Cúria Metropolitana e a cúpula da Arquidiocese de São Paulo, comandada pelo arcebispo Dom Odilo Scherer. Entre as 1 000 páginas do processo, chama atenção o depoimento de uma paroquiana que frequenta a Monte Serrat e deu esclarecimentos na condição de testemunha. Ela diz que “soube por uma secretária da paróquia e também por Dom Odilo que o padre Bartolomeu abusava de um jovem, no caso, o Elissandro”.
Nos autos, a defesa do cardeal alega que tomou as medidas cabíveis, incluindo a instauração de um processo canônico, e sustenta que Eli estaria agindo por vingança, depois de romper o relacionamento com o padre. Afirma ainda que o acusador não era menor de idade quando conheceu Bartolomeu — teria 18, e não 17 anos, como diz. Quanto ao depoimento da paroquiana, os advogados de Dom Odilo afirmam que ele “não se lembra de ter estado alguma vez com a depoente”. A defesa de Bartolomeu nega tudo. “A única relação que houve entre o padre e Elissandro foi filantrópica”, diz o advogado Matheus Sobral. Eli desenvolveu depressão e síndrome do pânico. Em uma das crises, tentou pôr fim à própria vida. Já Wellington, diz ter demorado a superar aquele fatídico Natal. “Por mais que tentasse, não conseguia estudar nem me relacionar com mais ninguém. O pesadelo custou a passar.” Para a Cúria Romana, o pesadelo é recorrente.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723