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Documentos revelam diplomacia entre Vaticano e Brasil na II Guerra

Pesquisa sobre período do pontificado de Pio XII mostra que a Igreja Católica convenceu o governo brasileiro a receber 'católicos não arianos'

Por Alessandro Giannini Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 11h19 - Publicado em 31 jul 2022, 08h00

Há três anos, por decisão do Papa Francisco, os arquivos secretos do Vaticano deixaram a aura furtiva e passaram a ser chamados de “apostólicos”. Foi um gesto na tentativa de imprimir transparência aos documentos em torno da atuação da Igreja Católica. No mais ruidoso movimento, abriram-se os armários relativos ao pontificado de Pio XII, entre 1939 e 1958. O comportamento do cardeal romano Eugenio Pacelli (1876-1958) antes, durante e depois da II Guerra é ainda hoje motivo de debate entre historiadores: alguns consideram condenável, e com sobejas evidências, a opção do então pontífice pela neutralidade diante da ascensão do fascismo italiano e do nazismo alemão. Novas revelações, contudo, mostram que o Vaticano teria agido de boa-fé.

O pesquisador brasileiro Jair Santos, da Escola Normal Superior de Pisa, na Itália, teve acesso à parte dessa papelada. Em artigo publicado na Revista de História da Universidade de São Paulo (USP), Santos analisou os trâmites da Santa Sé, orientada por Pio XII, nas conversas com o governo de Getúlio Vargas para a concessão de vistos a refugiados judeus convertidos ao catolicismo entre 1939 e 1941. A documentação esmiuçada mostra as trocas diplomáticas entre o Vaticano e o governo brasileiro no início da guerra, a partir de 1939. O pesquisador notou que havia desconfiança por parte das autoridades nacionais quanto à categoria dos “católicos não arianos”, ou seja, os judeus convertidos. Ainda assim, chegou-se a um acordo segundo o qual o Brasil emitiria 3 000 vistos aos indivíduos indicados pela Igreja. Sabe-se, agora, que apenas 959 autorizações de asilo foram concedidas. “É preciso entender por que os restantes não foram entregues”, disse Santos a VEJA. “Se há algo no acervo histórico em Roma que ajude a compreender a decisão, é preciso também mergulhar nos arquivos brasileiros.”

NO BRASIL - Getúlio Vargas e Eugenio Pacelli (no centro): visita oficial em 1934 -
NO BRASIL - Getúlio Vargas e Eugenio Pacelli (no centro): visita oficial em 1934 – (Arquivo Nacional/.)

Busca-se, a rigor, pôr na balança as emissões de vistos em número menor do que o esperado, mas também esclarecer um outro aspecto muito interessante: por que o Vaticano escolheu o Brasil para fazer o acordo, e não outro país da América Latina ou os Estados Unidos. Uma das motivações, segundo o trabalho de Santos, era a familiaridade da estrutura religiosa ao redor de Pio XII com o contexto brasileiro. As autoridades católicas tinham uma longa trajetória de contatos com seus pares brasileiros. Sabiam que o país oferecia abertura aos imigrantes — porque, ressalte-se, precisava deles, do ponto de vista social, econômico e religioso. Quando Vargas chegou ao poder, em 1930, uma de suas primeiras ações foi buscar o apoio da Igreja. O movimento do presidente favoreceu o diálogo com o Vaticano. Ressalte-se, ainda, que o cardeal Pacelli, antes de se tornar Pio XII, esteve no Rio de Janeiro, em 1934, ao retornar do Congresso Eucarístico em Buenos Aires. Parou na capital federal e, durante dois dias, manteve demorados encontros oficiais, base de boas relações futuras.

A descoberta da postura ética de Pio XII com imigrantes trazidos ao Brasil é informação fundamental na construção da imagem do papa que comandou a Igreja no tempo de Mussolini e Hitler. Houve, desde sempre, severas restrições à sua reação tímida em demasia diante do autoritarismo que emanava da Itália e da Alemanha — ele poderia ter feito mais, como chefe de Estado. Há, por outro lado, em proporção mais tímida, quem o apresente como uma figura heroica durante a guerra, na proteção das vítimas das leis raciais impostas pelos governos fascista e nazista. Nem tanto ao céu nem tanto à terra. “Não há em seus pronunciamentos públicos as palavras antissemitismo ou Holocausto, apenas referências muito vagas e muito pouco claras”, afirma Santos. “Não significa que ele fosse alheio à situação, mas que tentava agir nos bastidores, diplomaticamente.”

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Os pontífices já não se mexem às sombras o tempo todo. João Paulo II foi o pioneiro nessa característica. Ele nunca escondeu seu empenho na maré que varreu o Leste Europeu, no fim dos anos 1980, antessala da queda do Muro de Berlim e da derrocada do comunismo. Francisco, a seu modo e com sua tonalidade política, segue toada similar. Não por acaso, em recente viagem de cinco dias ao Canadá, fez questão de pedir desculpas por abusos de crianças indígenas em internatos católicos. É uma forma de engajamento que no tempo de Pio XII era acobertado, por conveniência ou medo, e que a abertura dos cadeados dos arquivos finalmente ilumina.

Publicado em VEJA de 3 de agosto de 2022, edição nº 2800

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