Autobiografia revela intimidade do papa Francisco
No livro, o pontífice mostra seu esforço em arejar a Igreja Católica, a mais tradicional das instituições
Em seus recém-completos onze anos de pontificado, o papa Francisco, de 87 anos, vem se equilibrando entre os dogmas compulsórios da Igreja Católica e a necessidade de arejar com os ventos da modernidade uma instituição de mais de 2 000 anos de existência. Eis a marca registrada de uma trajetória que não se distancia da liturgia, disciplinadamente cultivada, mas caminha tracejada por um líder religioso com os pés enraizados em um mundo em incansável transformação — equação delicada para a obra e o legado do argentino nascido Jorge Maria Bergoglio. O difícil equilíbrio atravessa as páginas da autobiografia Vida: Minha História Através da História (HarperCollins Brasil), com lançamento previsto para 15 de abril. O livro, escrito ao lado do vaticanista italiano Fabio Marchese Ragona (leia a entrevista abaixo), esclarece como deseja ser visto sob a luz da história — um pontífice atento às ambiguidades humanas e guiado por um pragmatismo que o faz se voltar para os fiéis com olhos mais abertos do que os de antecessores presos ao seu próprio tempo.
O volume entrelaça o percurso do papa com grandes eventos que sacudiram o planeta, ajudando a decifrar sua visão filosófica e política. Na passagem sobre a Segunda Guerra, ele expõe sua repulsa ao antissemitismo, modalidade de racismo que compara “a uma doença elevada à última potência por Hitler”. Quando adentra o sombrio período de ditadura na Argentina (1976-1983), o jesuíta que confrontou o regime rememora a amizade com uma professora comunista, a quem protegeu ao esconder dos militares sua comprometedora coleção de livros. Aproveita esse trecho para afastar de si a definição de comunista. “A Igreja não tem nem pode ter ideologia e reduzir tudo a questões de esquerda e direita. Compartilhar é cristianismo no estado mais puro”, registra. O pontífice não se expressa como um teólogo, o que tanto caracterizava Bento XVI, a quem sucedeu. “Fatos são mais importantes que ideias”, pontua.
A biografia é enfática ao mostrar que a face empática do papa, sensível a tormentas individuais, não significa pendor para remexer preceitos seculares. Ele sai em defesa da decisão de dar bênção a uniões entre pessoas do mesmo sexo, mas demarca fronteiras. “O matrimônio é um dos sete sacramentos e prevê o casamento apenas entre homem e mulher. Isso é intocável”, escreve ele, que considera “pecadores” os que conduzem arranjos diferentes, embora os acolha. “Jesus ia ao encontro de gente que vivia nas periferias existenciais, e é isso o que a Igreja deveria fazer com a comunidade LGBTQIA+”. Noutro pedaço, lembra que permitiu, em 2015, o perdão a grávidas que interrompem a gestação, sem diminuir sua aversão ao ato: “O aborto é um homicídio, um gesto criminoso”, dispara.
O que soa como uma eterna gangorra traduz, na verdade, o poder de um homem cercado por intrincadas circunstâncias. O contingente de católicos declina em pontos do globo em que parecia inabalável, como no Brasil, e Francisco revela ter consciência da missão de aliar a veia humanista ao pragmatismo, sem ferir o que é milenar. Com uma linguagem simples e direta, mira jovens leitores. “Eles são essenciais numa era em que o rebanho diminui”, diz Brenda Dávila, especialista em história social da Uerj.
Observador da marcha feminina, o papa pede que se abram cada vez mais janelas às mulheres nas engessadas estruturas eclesiásticas — a inédita presença delas no último Sínodo dos Bispos, espécie de órgão consultivo da Santa Sé, representou um salutar avanço nesta direção. Francisco é ainda intransigente ao cutucar o vespeiro do abuso sexual infantil por sacerdotes, tema que encarou nesses anos ao criar uma comissão interna no Vaticano para auditar igrejas e modernizar o código penal da cúria. “Quem é considerado culpado por um tribunal deverá pagar sua pena”, anota, criticando clérigos bons de papo, mas incapazes de desatar o nó.
Em sua intenção de se apresentar como alguém comum, suscetível às intempéries da existência, ele relata como ficou balançado por uma menina que quase o fez abandonar o seminário. Também entrega seu fascínio por Diego Maradona, fala das saudades de dançar tango com os amigos e conta que, durante o conclave que o fez papa em 2013, teve medo de entrar na sala de votação — não queria ganhar, jura. Em certo ponto, Francisco tenta sintetizar seu olhar em uma frase: “É fundamental abandonar a rigidez do passado e distanciar-se de uma Igreja que aponta o dedo e condena os outros”, diz o pontífice, que afasta no livro a ideia da renúncia que não raro o envolve. Por ora, o que ele parece querer mesmo é deixar sua marca.
“Ele mudou as regras do jogo”
O jornalista italiano Fabio Marchese Ragona, que propôs ao papa escrever a autobiografia, falou a VEJA por videochamada de seu escritório, em Roma.
Foi difícil convencer o papa a escrever o livro? Francisco confia em mim. Mantemos relação próxima desde que o entrevistei para a TV italiana, em 2021. Ele gostou da ideia sobretudo porque eu quis direcionar o livro aos jovens, de quem quer se aproximar.
Ele se preocupa com o fato de as novas gerações estarem mais afastadas da Igreja? A diminuição do rebanho é certamente uma preocupação de Francisco. Mas esse papa é muito bom em se fazer ouvir. Não por acaso, tem até perfil no Instagram.
O senhor também acompanhou o papado de Bento XVI. Quais as diferenças entre Francisco e seu antecessor? Todas. Francisco mudou as regras do jogo no Trono de Pedro. Nunca tinha visto um papa se encontrar com um embaixador pedindo para interromper uma guerra, como fez no caso da Ucrânia, por exemplo.
Até que ponto ele conseguiu transformar a Igreja? Essa é uma instituição que não muda do dia para a noite, mas é possível começar a plantar sementes nesta direção. Já foi um grande passo deixar bem claro que pessoas trans e homossexuais, antes vistas pelo Vaticano como maçãs podres, devem ser tão acolhidas quanto qualquer outro fiel.
Algo o surpreendeu ao escrever a biografia? Nunca imaginei que o papa pudesse ter tido uma paixão quando já era seminarista. Ele me disse: “Eu também sou ser humano, isso pode acontecer”.
O pontífice mencionou brevemente no livro o presidente argentino Javier Milei. Revelou ao senhor o que pensa sobre ele? Ele disse com todas as letras que Milei foi descortês e que o chamou de imbecil. Mas, com serenidade, Francisco reconheceu que o que um candidato fala durante a campanha, fica na campanha. Ele sabe que política é assim.
O senhor mudou sua percepção sobre o papa? Passamos um ano escrevendo juntos. Ao longo desse tempo, percebi que é uma pessoa realmente humilde, não é só fachada. Uma vez, ficamos até tarde em sua casa corrigindo o texto. Olhei para o relógio, não queria ser um estorvo. Aí Francisco perguntou: “Está com pressa? Quer ir embora?”, pensando ser ele quem estava me atrapalhando. Está para nascer outro papa tão pé no chão.
Publicado em VEJA de 22 de março de 2024, edição nº 2885