Atentado a Porta dos Fundos é ameaça concreta de intolerância religiosa
A polícia investiga o ataque a bombas contra a sede do grupo de humor, no Rio de Janeiro, que expõe um novo risco ao país: o extremismo religioso
Na madrugada do dia 24 de dezembro, enquanto os brasileiros celebravam um Natal de luz e paz, o país assistiu a uma demonstração de intolerância típica dos tempos de trevas. Por volta das 4 horas, quatro homens atacaram com coquetéis molotov a produtora da trupe humorística Porta dos Fundos, no bairro do Humaitá, Zona Sul do Rio de Janeiro. Ninguém se feriu no episódio perturbador. Desde 3 de dezembro, quando lançou na Netflix seu novo especial de Natal, A Primeira Tentação de Cristo, o Porta dos Fundos entrou na mira de setores religiosos irritados com seu retrato satírico de um Cristo gay e uma Nossa Senhora adúltera. Os críticos mais extremados pediram que o filme fosse tirado do ar. O atentado mostra que, não bastassem todos os problemas brasileiros, o país enfrenta agora a ameaça concreta da intolerância religiosa — uma praga até recentemente incomum por aqui.
Poucas horas depois do ataque, um grupo de extrema direita autointitulado Comando de Insurgência Popular Nacionalista da Família Integralista Brasileira assumiu a suposta autoria do atentado. Até a quinta-feira 26, a polícia carioca não havia esclarecido se o vídeo com três encapuzados veiculado na deep web era verdadeiro nem havia prendido suspeitos. Quatro veículos envolvidos no ataque — dois carros e duas motos — foram identificados e já se sabiam as características físicas dos quatro participantes, mas não sua identidade. “Quanto antes os culpados forem pegos, melhor para o país”, disse a VEJA o comediante Fábio Porchat, um dos atores do especial. “Ficará a demonstração de que no Brasil não se aceitam atos de terrorismo contra quem quer que seja.”
Pode-se gostar ou não do conteúdo do especial natalino da trupe do Porta dos Fundos. Mas qualquer tentativa de impedir sua veiculação é um evidente ataque à liberdade de expressão — censura, em português claro. “Não vão nos calar. É preciso estar atento e forte”, afirmou Porchat. E a intimidação pelo uso da violência, como se viu no atentado, é um precedente ainda mais macabro do que a pressão para tirar o programa do ar.
Publicado em VEJA de 1º de janeiro de 2020, edição nº 2667