Ala de pastores evangélicos faz barulho nas redes com ideias progressistas
Contraponto ao conservadorismo reinante, eles abraçam ideias como a descriminalização de drogas e do aborto e a união entre pessoas do mesmo sexo
Praticamente irrisório no Brasil durante quase todo o século XX, o rebanho evangélico avançou a passos largos nas últimas três décadas, até virar um fenômeno demográfico de grandes proporções: hoje representa quase um terço da população brasileira. O cenário teve como motor a atuação de um exército de pastores de denominações historicamente mais recentes, como as pentecostais Assembleia de Deus e Congregação Cristã e as neopentecostais, que têm como representante-mor a Igreja Universal do Reino de Deus. Todas elas foram angariando fiéis de origem católica, que despencaram de 83% para 50% numa nação em que essa fatia parecia inabalável. E nada indica que a marcha evangélica, alavancada pela politicagem, perderá impulso. Segundo as projeções, seguirá embalada em elevada velocidade até pelo menos 2030, ano em que um marco espetacular será cravado: o Brasil deixará de abrigar, percentualmente, o maior contingente católico do planeta, superado pela primeira vez pelos evangélicos.
Nesse rol, avista-se um forte pendor conservador no terreno dos costumes, mas a novidade reside em uma ainda pequena mas barulhenta ala de líderes religiosos que agitam bandeiras progressistas. As redes vêm funcionando como uma poderosa caixa de ressonância desses pastores que arejam a paisagem com uma visão menos rígida do evangelho e atiçam a polêmica ao abraçar temas que incendeiam o polarizado cenário brasileiro, como a descriminalização do aborto e das drogas e a união entre pessoas do mesmo sexo. São tópicos que inflamam a bancada evangélica no Congresso Nacional, majoritariamente conservadora, mas que, na reflexão dessa turma progressista, ganham nova roupagem.
A tentativa é sintonizar com um mundo cada vez mais veloz e diverso. “Eu passei a rechaçar a ideia de um Deus preconceituoso, o que em nada colide com a Bíblia”, diz Hermes Fernandes, 53 anos, fundador da Igreja Reina, no Rio de Janeiro. Em um de seus sermões, ele acusou de homofobia os pastores Silas Malafaia e André Valadão, dois expoentes da corrente conservadora. Não demorou para ultrapassar 10 milhões de visualizações nas redes. “Emissores de Satanás”, bradou Fernandes, as lágrimas escorrendo pela face. Aproveitou o púlpito para lembrar que o discurso movido a ódio pode “matar homossexuais”. “Se estivesse entre nós, Jesus certamente se colocaria ao lado dos apedrejados e não dos que apedrejam. É uma questão de fé, não apenas de ideologia”, afirma, ao resumir o pensamento de um grupo que conquista espaço sob os holofotes.
Embora ruidosa e articulada, a peleja travada entre pastores progressistas e tradicionais faz lembrar o desigual embate bíblico entre Davi e Golias. Levantamento sobre a popularidade digital dessas lideranças, elaborado a pedido de VEJA pelo instituto de pesquisas Quaest, revela que dois pastores do campo progressista já figuram entre os dez que mais reverberam, um avanço notável, que dá ao mesmo tempo a dimensão do chão que os separa.
Na lista dos que vêm se destacando estão o presbiteriano Caio Fábio, 68 anos, e Henrique Vieira, 36, à frente da Igreja Batista do Caminho e deputado federal pelo PSOL do Rio. O restante do ranking é tomado por religiosos com forte presença nos meios de comunicação, como o próprio Malafaia, que desponta no topo, e o bispo Edir Macedo, na vice-liderança. A diferença em número de seguidores, o tão valorizado termômetro destes tempos, se revela ainda maior. O representante progressista com o maior quinhão é justamente Caio Fábio (1,7 milhão), enquanto o pastor Deive Leonardo (35 milhões), que não tem igreja fixa e prega no YouTube, sobressai em meio aos conservadores no universo virtual. “Existe uma parcela do mercado religioso em busca de uma abordagem mais moderna, e é aí que se descortina uma brecha para os chamados progressistas se expandirem”, avalia Vinícius do Valle, diretor-executivo do Observatório Evangélico.
Não é batalha fácil, já que há hoje no país um perigoso caldo que mistura religião e política, dando um impulso incomparável à banda conservadora. Nos últimos anos, essa turma se aproximou da ala à direita no Congresso e se entrincheirou na Frente Parlamentar Evangélica como nunca antes, abraçando o bolsonarismo no mais alto grau. Nesse percurso, figuras que não professavam da mesma cartilha foram perdendo força e postos na hierarquia de suas denominações, sendo limadas pelos próprios pares. Ocorreu sobretudo em igrejas mais tradicionais, como a Presbiteriana e a Batista, onde ainda se ouvia, aqui e ali, vozes dissonantes. “A direita adotou jargões religiosos próprios e uma interpretação literal e fundamentalista da Bíblia”, diz Sérgio Dusilek, 52 anos, ex-presidente da Convenção Batista Carioca, forçado a entregar o cargo após participar de um ato em apoio a Lula, na campanha de 2022.
Boa parte dos atuais nomes do progressismo religioso é egressa dessas fileiras não pentecostais, onde chegaram a formar grupos para debater a realidade à luz da Bíblia, mas, com o palco cada vez mais minguado, acabaram debandando em busca de trajetória solo. “Hoje, trabalho por uma igreja mais próxima das pessoas, fugindo do maniqueísmo”, enuncia Rodolfo Capler, 36 anos, vindo das hostes batistas, à frente agora da Igreja Alternativa, no interior de São Paulo. O que ele e os outros desgarrados de famosos templos tentam é implantar um exercício mais humanista da fé, sem a pompa e a grandeza que cercam os cultos das grandes denominações nem julgamentos que fecham as portas a quem não veste o figurino conservador.
Muitos se alojam em bases modestas e às vezes pregam até na casa das pessoas. “A experiência do indivíduo com Deus é o que importa”, defende o pastor Dusilek. Guardadas todas as nuances históricas, a turma progressista revisita as raízes da Reforma Protestante que se desenrolou no século XVI, encabeçada por mentes como a do francês João Calvino e do alemão Martinho Lutero, que trouxeram um sopro de renovação capaz de chacoalhar os medievais pilares do catolicismo. “A ética protestante representou uma revolução ao pontuar que cada pessoa é responsável por sua vida e foi fundamental para que o capitalismo florescesse em países como os Estados Unidos, fincado em valores como trabalho duro e disciplina”, esclarece o teólogo Lourenço Stelio Rega.
Para ganhar visibilidade no tão concorrido ambiente evangélico, os pastores progressistas não hesitam em expor nos onipresentes picadeiros das redes suas próprias ambiguidades. Um dos mais proeminentes cantores gospel do país, Kleber Lucas, 55 anos, no comando da igreja que batizou de Soul, no Rio, foi recém-cancelado por uma parcela do rebanho que não tolerou o fato de ser divorciado (status repudiado pelo evangelho) e ainda posar na companhia de bons rótulos de vinho. “O mundo girou, e a lente com a qual o enxergamos precisa mudar também”, prega o pastor. Ele não é o único a exibir a vida como ela é, sem filtros. Assumidamente gay, Bob Botelho, 29 anos, lidera uma igreja que acolhe pessoas LGBTQIA+ em Curitiba. “Já recebi mensagens dizendo que sou o diabo, que vou para o inferno e que querem me matar”, conta Botelho, que há sete anos também criou a organização missionária Evangélicxs pela Diversidade. A fresta aberta por eles não é apenas um contraponto à intolerância, mas a prova de que, quando se trata de fé, há lugar para todos, em permanente respeito à diversidade da civilização. Sem rancor, sem preconceitos.
Publicado em VEJA de 17 de novembro de 2023, edição nº 2868