A multiplicação dos bebês de casais da ala conservadora da Igreja Católica
Eles abraçam doutrina cristã à risca, rechaçam métodos contraceptivos e formam famílias numerosas
Momento de alta ebulição, os anos 1960 foram marcados mundo afora por inflamadas agitações em prol de bandeiras civilizatórias, entre elas a do avanço feminino na sociedade. O surgimento da pílula nesse efervescente cenário foi um divisor, abrindo às mulheres a janela para uma sexualidade mais livre. Não ter filhos passou então a ser escolha, passo decisivo para pavimentar o caminho delas rumo ao mercado de trabalho e a uma vida com menos amarras. Conforme o mundo gira, a população feminina registra cada vez menos crianças, uma opção que vem sacudindo as placas tectônicas da demografia e trazendo ao mundo o desafio de se repensar com menos bebês.
Em meio a essa profunda mudança, uma turma que pertence à crescente ala conservadora da igreja católica marcha na contramão, contribuindo para manter as maternidades movimentadas. São pessoas que abraçam de forma irrestrita a doutrina cristã, segundo a qual o tamanho das famílias é da vontade de Deus. Não cabe aí, portanto, qualquer método tido como artificial para frear a natalidade — nem pílula, nem preservativos, nem mesmo a boa e velha tabelinha. “Esse fenômeno segue uma lógica antimodernidade”, diz o escritor e filósofo Francisco Razzo. “É uma resposta radical a uma sociedade vista por essas pessoas com uma abordagem efêmera e progressista no campo sexual.” Os estudiosos afirmam que o fenômeno é percebido hoje com frequência surpreendente entre universitários de classe média, gente bem informada, mas com convicções religiosas inabaláveis. Eles fazem reverberar suas ideias na caixa de ressonância da internet, onde perfis sob o guarda-chuva pró-vida ultrapassam 1 milhão de seguidores e, não raro, prestam o desserviço de espalhar mitos e inverdades sobre o tema. Pessoas famosas também dão visibilidade a esse modo de enxergar o mundo, que colide com o da imensa parcela da humanidade, há tempos adepta da ciência da prevenção da gravidez. “Sei que pode parecer anacrônico, mas somos um casal aberto à vida. Casamos no religioso e vamos ter quantos filhos Deus mandar”, disse a VEJA o ator Juliano Cazarré, pai de cinco.
O mais recente relatório da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), de abril, cita com preocupação a expansão de uma ala dos radicais católicos que vem sendo embalada pela polarização no país. O documento afirma que eles pregam a “demonização do catolicismo progressista” e se lançam em uma “cruzada de difamação e de desinformação”. Uma parte dos integrantes da corrente pró-vida se situa nesse espectro mencionado pela CNBB. “Embora seu discurso principal seja a questão da natalidade, essa corrente muitas vezes também se alinha às pautas da direita, inclusive na política”, observa Vinícius Mérida, cientista das religiões da PUC-Minas.
No delicado terreno da maternidade, em que o desejo de cada um por ter ou não filhos, não importa o motivo, deve ser respeitado no mais alto grau, a turma contra métodos anticoncepcionais — ou “abortivos”, para os mais radicais — desfia uma linha de pensamento em que não cabe debate. “Quem usa recursos contraceptivos artificiais fecha as portas à vida e fere a finalidade do matrimônio, que é unitiva e procriativa”, defende a psicóloga gaúcha Geise Devit, 41 anos, que tem seis filhos e disposição para mais. Na arena virtual, esse discurso ganha escala exponencial em perfis como o de Samia Marsili, repleto de frases de efeito. Mulher de Italo Marsili, discípulo do falecido guru bolsonarista Olavo de Carvalho, e com uma prole de sete meninos, ela virou uma espécie de coach de famílias numerosas, dando dicas de como criar seres “virtuosos”. Samia escreve em uma das postagens: “O celular, as distrações e a preguiça não podem ser nossas desculpas para não fazermos o que precisa ser feito”.
O fundo teológico dessa corrente reside na encíclica Humanae Vitae, do papado de Paulo VI, de 1968 — a primeira vez que o Vaticano se referiu, diretamente, à questão da “regulação da natalidade”. Não se tratava ali do apoio à prevenção da gravidez, mas de liberar certas mulheres em casos específicos, como a necessidade de espaçar uma gestação por doença ou por dificuldades financeiras extremas, a usar métodos estritamente naturais, como aqueles que se baseiam na observação de fluidos vaginais (tabelinha, não). “O movimento conservador que adota tais ideias não se expande só no Brasil, mas em vários cantos, como nos Estados Unidos e na Polônia”, afirma o historiador da religião Victor Gama.
Quando adeptos dessa postura expõem sua coleção de filhos, costumam causar espanto em um planeta com a natalidade tão em baixa. Aos 38 anos, a paulista Mariana Arasaki teve dez bebês em onze anos e espera gêmeas para setembro. Ela, que é influencer entre católicos pró-vida, diz: “Não somos ricos, corremos atrás, mas confiamos cegamente na providência divina”. Até no mais alto clero a questão da quantidade de rebentos foi alvo de polêmica. O próprio papa Francisco, tido como um pontífice de olhar mais progressista, já declarou que os católicos não devem se reproduzir “como coelhos” e precisam ser “responsáveis”. Logo depois, suavizou o tom e declarou: “Sinto alegria de ver tantas famílias numerosas”. Que em um futuro próximo assunto tão crucial não fique adormecido nos escaninhos do Vaticano e possa ser trazido à luz sem tantos tabus.
Publicado em VEJA de 1º de setembro de 2023, edição nº 2857