Versões divergentes de militares trazem poucos motivos para Bolsonaro comemorar
Relatos dos ex-comandantes das Forças Armadas geram embates e animam a defesa do ex-presidente, mas dificilmente vão mudar o curso do processo

Ao indicar o ex-comandante do Exército general Freire Gomes e o ex-comandante da Aeronáutica brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Jr. como testemunhas da acusação no processo que tem Jair Bolsonaro como suspeito de liderar uma trama golpista, a Procuradoria-Geral da República tinha uma estratégia bem definida. Os dois participaram ativamente das discussões sobre preparativos do que seria uma intervenção militar para anular o resultado das eleições de 2022 e impedir a posse de Lula. Ambos teriam se recusado a apoiar a operação e evitado que o pior acontecesse. Ouvidos pela Polícia Federal na fase de inquérito, eles confirmaram detalhes importantes que ajudaram a cristalizar a tese de que a democracia esteve por um fio no apagar das luzes do governo passado. Num gesto de heroísmo, o general, inclusive, ameaçou prender o ex-presidente. Por tudo isso, eles eram — e ainda são — peças fundamentais para provar que Bolsonaro e outros trinta réus conspiraram por uma ruptura institucional, o que, se comprovado, pode render condenações de até quarenta anos de prisão aos envolvidos. Mas nem tudo saiu exatamente como previsto.

Diante dos ministros da 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal (STF), na segunda-feira 19, o general, o primeiro a depor, minimizou a gravidade das articulações supostamente golpistas. Freire Gomes confirmou reuniões com Bolsonaro e disse que o ex-presidente apresentou aos militares propostas de decretação de Garantia da Lei e da Ordem (GLO), de estado de defesa e de sítio — e reafirmou que, entre as medidas estudadas, havia até a possibilidade de prisão do ministro Alexandre de Moraes. O ex-comandante, no entanto, ressaltou que eram apenas “hipóteses” e “estudos” embasados na Constituição. “Por isso não nos causou nenhuma espécie, não havia nada diferente disso”, afirmou. O general também apresentou uma visão mais branda tanto do golpismo quanto da reação que ele teria tido diante da constatação de uma intenção de ruptura. “A mídia até reportou que eu teria dado voz de prisão ao presidente. Não aconteceu isso de forma alguma. O que eu alertei foi que, se ele saísse dos aspectos jurídicos, além de não contar com o nosso apoio, poderia ser enquadrado juridicamente. Ele concordou e o assunto foi mantido nessa forma”, declarou.

O general ainda evitou incriminar o ex-chefe da Marinha Almir Garnier, o único dos ex-comandantes tornado réu na trama golpista após supostamente colocar suas tropas à disposição de Bolsonaro. Testemunha do episódio, Freire Gomes disse que o almirante deve ter ficado surpreso com a proposta do então presidente e apenas demonstrou respeito a ele. “Não interpretei como qualquer tipo de conluio, o senhor me desculpe”, afirmou. Demonstrando uma visível irritação, o ministro Alexandre de Moraes interrompeu o depoimento e deu um pito no militar. “Eu vou dar uma chance à testemunha de falar a verdade. Se mentiu à polícia, tem que dizer que mentiu à polícia. Não pode no STF dizer que não lembra, que talvez. A testemunha é general do Exército, foi comandante do Exército. Consequentemente, está preparado a lidar sob pressão. Eu solicito que, antes de responder, pense bem”, disse o relator do processo. O militar respondeu que, com cinquenta anos de farda, jamais mentiria. Na sequência, afirmou que ouviu do almirante que “estava com o presidente”, mas que não caberia a ele interpretar a intenção da declaração.
“Ele apresentou esse apanhado de considerandos, todos eles embasados em aspectos jurídicos, dentro da Constituição. Por isso não nos causou nenhuma espécie, não havia nada diferente disso.”
Freire Gomes, sobre suposto plano golpista de Jair Bolsonaro
A defesa de Jair Bolsonaro comemorou o depoimento de Freire Gomes. “Tenho que a acusação sai muito enfraquecida da narrativa que construiu”, afirma o advogado Paulo Cunha Bueno. Segundo ele, as palavras do general ajudam a confirmar a principal tese da defesa: a de que o ex-presidente fez de fato consultas sobre possíveis ações contra o resultado das urnas, mas não concordou com nenhuma medida ilegal, apesar de ter sido pressionado por seus apoiadores a seguir esse caminho.

“Em momento algum o presidente Bolsonaro colocou que estava objetivando um golpe de Estado. Mas durante as discussões nós começamos a imaginar que os objetivos políticos de uma medida de exceção não eram para garantir a paz social.”
Baptista Jr., sobre plano golpista do ex-presidente
Na quarta 21, foi a vez do brigadeiro Carlos de Almeida Baptista Jr. ser ouvido. Ele reafirmou tudo que dissera na fase de inquérito. Baptista detalhou as tratativas que o então presidente manteve com os chefes militares dois dias após sair derrotado. O comandante contou que, após o segundo turno das eleições de 2022, Jair Bolsonaro chamou para uma reunião no Palácio da Alvorada os três comandantes das Forças Armadas, o ministro da Defesa e o advogado-geral da União. Juntos, os auxiliares se debruçaram sobre o resultado das urnas e diagnosticaram ao presidente que não havia qualquer indício de fraude eleitoral. Desolado, ele perguntou ao assessor jurídico se tinha espaço para alguma solução ser tomada. A resposta foi negativa. No dia seguinte, um Bolsonaro ainda mais deprimido convocou os mesmos militares para um novo encontro e começou a aventar a possibilidade de recorrer a algumas alternativas, entre elas a decretação da GLO. Ali, segundo o brigadeiro, acendeu o alerta de que o presidente poderia estar disposto a tomar alguma medida extrema.
“Pelo que me lembro, o Almir Garnier apenas demonstrou respeito ao comandante em chefe. Não interpretei como qualquer tipo de conluio, o senhor me desculpe.”
Freire Gomes, sobre apoio do ex-comandante da Marinha ao golpe
Num terceiro encontro, a suspeita virou certeza. Diante dos chefes militares, o presidente disparou telefonemas a supostos estudiosos que teriam detectado fraudes na eleição, os colocou em contato com os comandantes e entregou a eles um documento “mal escrito” que evidenciaria irregularidades nas urnas. Em conversas reservadas, os chefes militares confidenciavam uma preocupação crescente ao perceberem que as Forças Armadas, ao invés de serem utilizadas para garantir a paz social, como imaginavam, estavam sendo instrumentalizadas para medidas de exceção. Foi em um desses momentos, em novembro de 2022, que o comandante do Exército teria demonstrado seu desconforto com a situação e advertido o presidente: “Se fizer isso, vou ter de lhe prender”. Baptista contou que ele próprio rejeitou com “ênfase” as alternativas apresentadas por Bolsonaro. “Aconteça o que acontecer, no dia 1º (de janeiro de 2023) o senhor não será presidente”, disse o brigadeiro. Segundo ele, o ex-chefe da Marinha adotava uma postura passiva e não estava alinhado aos demais comandantes. “Eu não fiquei sabendo à toa que a Marinha tem 14 000 fuzileiros”, ironizou. O depoimento foi considerado o mais contundente até aqui.

“Nós não estávamos lá só para discutir bases jurídicas — estávamos discutindo o ambiente e possibilidades. E isso foi o que o Garnier falou. Eu não fiquei sabendo à toa que a Marinha tem 14 000 fuzileiros.”
Baptista Jr., sobre apoio do ex-comandante da Marinha ao golpe
É improvável que esse conflito de versões, por si só, seja suficiente para fragilizar a tese da PGR. Na versão do ex-presidente, o que se discutia nos estertores de seu governo eram medidas legais que poderiam ser implementadas caso se constatasse que teria havido fraude no processo eleitoral. A maneira como Freire Gomes descreveu esses momentos, minimizando algumas situações e não confirmando outras, evidentemente serve à defesa dos acusados, mas não compromete a acusação como um todo. Durante as investigações, por exemplo, a Polícia Federal encontrou nos celulares e nos computadores de alguns dos personagens acusados planos para prender o ministro Alexandre de Moraes e “eliminar” o presidente Lula e o vice Geraldo Alckmin. Isso, evidentemente, está muito além das “quatro linhas”, termo que Bolsonaro gosta de usar para dizer que tudo que fez estava respaldado na Constituição. Acusado por cinco crimes — tentativa de golpe de Estado, abolição do estado de direito, dano ao patrimônio, deterioração de patrimônio tombado e organização criminosa —, o ex-presidente, apesar de manter algum otimismo, não tem por que comemorar.
Publicado em VEJA de 23 de maio de 2025, edição nº 2945