Chocante troca de insultos marca uma campanha sob domínio da baixaria
No embate por votos no dia 30, a grosseria foi posta no centro do palco, e lá deve permanecer nos debates, nas propagandas e no vale-tudo da internet
É de praxe nas eleições em dois turnos que, após a primeira etapa, os dois candidatos que seguem no páreo movam céus e terras para alcançar mais de 50% dos votos válidos e vencer a disputa. Nessa batalha, o público se acostumou a ver ataques pesados à trajetória política e insultos velados à vida pessoal de cada um, tudo bem dosado para o nível do discurso não transbordar e espantar o eleitorado. A votação de 2018 começou a mudar esse cenário, com a predileção pelas falas teoricamente sem papas na língua, mas na prática muitas vezes mal-educadas, de Jair Bolsonaro e, mais ainda, de seus apoiadores. Na disputa agora entre Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva, as mentiras e golpes baixos vindos das duas partes ocuparam o espaço do debate e o caldo entornou de vez: em um duelo que gira em torno dos índices de rejeição, nunca se viu tanta baixaria em campanhas na história deste país.
Os sorrisos simpáticos de Lula e Bolsonaro no horário eleitoral gratuito disfarçam a inédita agressividade com que os dois oponentes têm se enfrentado. Lula resgatou uma entrevista de Bolsonaro ao The New York Times em 2016 em que ele diz que, se estivesse em um ritual antropofágico de alguma tribo, teria a coragem de comer índio com banana. O programa petista também acusou o presidente de armar milicianos e de defender o aborto, citando uma declaração antiga dele de que a decisão de interromper a gravidez “deve ser do casal”. Bolsonaro não deixou barato: taxou Lula de “pinguço” e “ladrão” no comando de “uma quadrilha”. “Se um dos lados ataca, obriga o outro a fazer o mesmo para empatar o jogo. Daí ocorre uma escalada da baixaria”, explica Marcelo Vitorino, professor de marketing político da ESPM.
O pendor à grosseria e à vulgaridade em níveis sem paralelo no contexto eleitoral faz eco com a ascensão dos líderes populistas modernos que, para se desgarrar das “malignas elites”, adotaram uma retórica em que a polidez é quase pecado. A postura, que tem em Donald Trump seu maior propagador, contraria o que já foi uma regra de ouro do marketing político — a de que quem bate no adversário perde a eleição por afastar o eleitor mais ponderado. Aparentemente, o preceito se tornou obsoleto e agora jogar lama é arma eficaz. Para Bolsonaro, parece estar funcionando: no mano a mano para incrementar índices de rejeição, o do presidente caiu 2 pontos, de 50% para 48%, enquanto o de Lula subiu 2, de 40% para 42%, segundo o último levantamento do Ipec (ex-Ibope). “O mundo mudou”, observa o marqueteiro Renato Pereira. “Com a alta da polarização, não basta mais derrotar o adversário, é preciso aniquilá-lo, como se fosse uma grande partida de videogame.”
Mesmo correndo o risco de se desgastar, a avaliação do QG petista é que não se pode repetir o comportamento de 2018, quando Bolsonaro partia para cima e Fernando Haddad ficava encurralado contra as cordas. “Não é possível rebater acusações que mexem com o emocional do eleitor apenas com a razão”, justifica Wellington Dias, um dos coordenadores da campanha de Lula. Por mais que os dois candidatos baixem o nível, porém, suas falas não se comparam ao que se passa na terra sem lei das redes sociais. Postagens sem fundamento que descambam para o puro e simples terror, como a que associa Lula ao satanismo e Bolsonaro ao canibalismo, se tornaram virais em 15 000 grupos de WhatsApp analisados pela Palver, especializada em monitorar as redes. “O volume de mensagens com fake news e conteúdo emocional não apenas cresceu, como agora elas têm como foco atacar o adversário”, diz Miguel Lian Leite, analista da empresa.
No universo dos influenciadores digitais, o lulista André Janones e o bolsonarista Nikolas Ferreira, escalados para distribuir pauladas virtuais desprovidas de verdade entre suas legiões de seguidores, descambaram para uma lamentável troca de acusações de cunho sexual de fazer corar até quem viu de tudo em campanhas. Baixarias já desequilibraram o jogo em eleições. Em 1989, Fernando Collor venceu o segundo turno depois de veicular o depoimento de Miriam Cordeiro, mãe da primeira filha de Lula, que o acusava de querer que fizesse aborto. Aécio Neves perdeu votos em 2014, entre outros fatores, por chamar Dilma Rousseff de leviana, palavra malvista no Nordeste. A diferença é que, no embate por votos no dia 30, a grosseria foi posta no centro do palco, e lá deve permanecer nos debates, nas propagandas e no vale-tudo das redes sociais. Ao eleitor, resta preparar o estômago.
Publicado em VEJA de 19 de outubro de 2022, edição nº 2811