Troca de acusações esquenta briga entre Doria e Leite nas prévias do PSDB
Disputa por candidatura do partido tem acusação de fraude e ameaça de judicialização do resultado do processo
O PSDB desejava transformar suas prévias presidenciais em um show de democracia partidária, com os concorrentes debatendo em alto nível até a escolha do vencedor, que seria aclamado também pelos perdedores, em nome da união para transformar a sigla na grande liderança da terceira via. Em vez disso, o que se vê é uma luta fratricida entre os favoritos. Enquanto nos bastidores as tropas tucanas já trocavam bicadas, o paulista João Doria e o gaúcho Eduardo Leite conseguiram durante um tempo preservar em público um tom diplomático, com direito a elogios mútuos e críticas feitas de forma civilizada. Nos últimos dias, no entanto, o clima de luta honrada deu lugar a cenas de telecatch, incluindo acusações de golpes baixos. Não poderia haver nada pior do que isso para uma legenda derrotada nas últimas cinco eleições presidenciais e com perspectivas de uma campanha dificílima para 2022 — embora tenham potencial de crescimento, tanto Doria quanto Leite aparecem hoje com índices baixos nas pesquisas.
O capítulo mais recente e grave da crise tucana teve como estopim a acusação partida das hostes do gaúcho de que o rival paulista estaria inflando de forma irregular sua base eleitoral, o que o lado contrário nega de forma veemente. Leite pôs em xeque a lisura do processo e, em entrevista ao programa Amarelas On Air, de VEJA, veiculado na segunda 25, afirmou que “certamente” o assunto será levado aos tribunais, caso a direção partidária não tome providências para impedir que esses votos sejam considerados. Dois dias depois, Doria reagiu e, em coletiva realizada em Dubai, onde o governador paulista abriu um escritório de representação comercial para trazer negócios ao estado, acusou Leite de “criar um mancha” no processo das prévias, sem citar o nome do gaúcho. “Eleição não se ganha no grito, se ganha no voto. Por que ter medo do voto?”, ironizou Doria, que não perde a oportunidade de se jactar de ser “filho das prévias”, em menção às disputas vencidas por ele para suas candidaturas à prefeitura e ao governo de São Paulo. Até Arthur Virgílio, azarão no páreo atual do PSDB, colocou mais lenha na fogueira, pedindo a expulsão de um adversário ou outro, por fraude ou falsa acusação.
O imbróglio começou com uma representação levada à Executiva Nacional do PSDB pelos diretórios de Minas Gerais, Bahia, Ceará e Rio Grande do Sul, que apoiam Leite. Segundo ela, 51 prefeitos e 41 vices foram filiados pelo diretório de São Paulo depois de 31 de maio, prazo fixado pela cúpula tucana como limite para votar nas prévias. Os registros nos sistemas de informação, no entanto, teriam sido feitos retroativamente. O documento pede providências do partido e até o envio do caso ao Ministério Público. Presidido por Marco Vinholi, secretário de Desenvolvimento Regional da gestão Doria, o PSDB paulista apresentou à direção suas explicações, alegando que os ingressos em suas fileiras foram regularmente processados, sem impugnações, e que é normal haver diferenças entre as datas de filiação e as dos atos em que elas foram divulgadas — os aliados de Leite citam eventos ocorridos em julho. A insistência do gaúcho em negar suas digitais nesse ataque frontal ao concorrente irritou ainda mais os aliados de Doria, que passaram a acusá-lo nos bastidores de agir de forma dissimulada. Do outro lado, aliados de Leite passaram a defender o afastamento de Vinholi do PSDB paulista. “Não tem nada no processo que pudesse suscitar um questionamento com essa contundência”, lamenta Antonio Imbassahy, secretário que chefia o escritório de São Paulo em Brasília.
A briga terá de ser decidida agora pela cúpula da sigla. Para tentar acalmar os ânimos, o presidente do PSDB, Bruno Araújo (que apoia Eduardo Leite), determinou provisoriamente a retirada dos 92 nomes da lista de eleitores. Ele passou em seguida a bola à comissão que organiza as prévias, formada por sete tucanos de seis estados. Nas próximas semanas, caberá ao colegiado decidir caso a caso.“Não podemos admitir atos não republicanos na disputa, como o de falsificação de filiações”, ataca o deputado Lucas Redecker (RS), aliado de Leite e membro da comissão. “Essas acusações são um completo absurdo”, rebate Marco Vinholi, membro da mesma comissão. “Querem diminuir os votos do PSDB de São Paulo na votação.”
Não é apenas na troca de acusações que a campanha vem num crescendo. Na disputa da narrativa sobre de qual lado a vitória está mais perto, aliados de Leite e Doria calculam ter, em cenários mais favoráveis, cerca de 65% dos votos nas prévias (embora a evolução do gaúcho seja nítida nas últimas semanas, até a cúpula do PSDB, onde Doria tem vários desafetos, admite que o favoritismo é do paulista). Em campanha, ambos têm vendido os feitos de suas gestões estaduais: Doria se mostra como “pai da vacina” contra a Covid-19, o que é verdade, e exalta o crescimento econômico paulista, muito superior ao do Brasil. Leite ressalta medidas de ajuste fiscal e saneamento das contas gaúchas.
Há menos de um mês da realização das prévias de 21 de novembro, Doria e Leite intensificaram também as andanças pelo país em busca de mais votos. No momento, ambos tentam abrir rachaduras nas fortalezas rivais. Doria tem apoios importantes até no Rio Grande do Sul de Leite e em Minas Gerais, zona de influência do deputado Aécio Neves, que trabalha forte contra o governador paulista. Em breve, espera anunciar avanços no Ceará, o que pode ter outro grande peso simbólico: um dos caciques estaduais é o senador tucano Tasso Jereissati, que desistiu da disputa das prévias para apoiar Leite. O gaúcho, por sua vez, mira em São Paulo e, com ajuda do ex-governador Geraldo Alckmin, inimigo de Doria e de malas prontas para deixar o partido, atraiu para o seu campo os prefeitos de Santo André e São José dos Campos, entre outros.
Em meio a uma grande preocupação com o nível atual da disputa, há quem veja com otimismo a alta temperatura. “O PSDB está renascendo das cinzas e a turbulência é muito melhor que a paz dos cemitérios”, tenta minimizar o ex-deputado mineiro Marcus Pestana, membro da comissão do PSDB que organiza as prévias. É fato também que disputas quentes costumam ocorrer em países com maior tradição em prévias. Nas primárias do Partido Democrata que decidiram pela candidatura de Joe Biden em 2020, por exemplo, a atual vice-presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, não somente era uma das pré-candidatas como bateu firme no futuro companheiro de chapa. A diferença é que não havia entre eles nenhuma acusação de fraude, como ocorre hoje com os tucanos. Doria e Leite começaram suas campanhas garantindo que apoiariam o vencedor e caminhariam juntos na batalha pelo Palácio do Planalto. Agora, com a troca raivosa de bicadas entre os favoritos, será difícil mantê-los em harmonia no mesmo ninho.
Publicado em VEJA de 3 de novembro de 2021, edição nº 2762