Triplo carpado
A convite de Bolsonaro, Sergio Moro aceita a pasta da Justiça. Pode ser excelente para o governo, mas joga uma sombra sobre a idoneidade da Lava-Jato
O juiz Sergio Fernando Moro, de 46 anos, que se tornou uma estrela internacional com a Lava-Jato, acaba de fazer o movimento mais temerário de sua carreira — o equivalente a um salto triplo carpado. A convite do presidente eleito Jair Bolsonaro, Moro decidiu abandonar a Lava-Jato e entrar na política, terreno que jamais pisaria, segundo disse incontáveis vezes. Moro será o ministro da Justiça do novo governo, uma pasta que voltará a ser turbinada com a presença da Polícia Federal, que fazia parte do Ministério da Segurança Pública. Além disso, sua pasta deve ter controle sobre uma parte do Coaf, órgão que fiscaliza as transações financeiras no país. Com esses predicados, o Ministério da Justiça passa a ser uma superpasta, e Moro, um superministro. Sua missão será manter o combate sem tréguas à corrupção, como vinha fazendo na Lava-Jato, e abrir uma nova frente: o combate à criminalidade, uma chaga que se espraiou pelo país e foi uma das principais bandeiras da campanha de Bolsonaro.
Com sua experiência, sua competência e sua capacidade de trabalho, Moro está perfeitamente apetrechado para ser um ministro da Justiça altamente eficaz. Conhece os meandros da corrupção no mundo oficial, já tomou decisões jurídicas sobre assuntos ligados à criminalidade e, por tudo isso, talvez tenha um perfil particularmente adaptado ao cargo. Em nota divulgada depois de aceitar o convite, Moro disse: “A perspectiva de implementar uma forte agenda anticorrupção e anticrime organizado, com respeito à Constituição, à lei e aos direitos, levou-me a tomar esta decisão. Na prática, significa consolidar os avanços contra o crime e a corrupção dos últimos anos e afastar riscos de retrocesso por um bem maior”.
“É um político falando de coisa de economia. É a mesma coisa que eu sair falando de política.”
Paulo Guedes, criticando o futuro ministro Onyx Lorenzoni
“Defendo uma leitura que ainda está em processamento, que se faça (a reforma da Previdência) de uma única vez, algo que dure trinta anos.”
Onyx Lorenzoni, falando de economia
Até aí, tudo bem. O aspecto temerário da decisão de Moro é outro. Está no que ele deixa para trás, que é a própria Lava-Jato. Durante os mais de quatro anos em que foi o juiz da operação, Moro recebeu acusações — equivocadas, na maioria — de tomar medidas excessivas e motivadas por razões políticas. O PT, na tentativa incansável de politizar a condenação e a prisão do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, sempre levantou a bandeira de que o juiz agia politicamente e, por isso, perseguiu de modo implacável o ex-presidente. O Brasil inteiro sabe que tudo isso é balela. Mas é inegável que, ao aderir ao governo Bolsonaro, Moro dá um extraordinário impulso às acusações de que, no fundo, tinha preferências e mesmo ambições políticas. Nada disso compromete o valor técnico de suas decisões jurídicas, mas pega mal para um juiz. Pega ainda pior quando esse juiz é Sergio Moro, o magistrado que mandou prender um ex-presidente e agora assume um cargo no governo do adversário político do condenado. Melhor seria se Moro tivesse mantido seu comportamento técnico e seu distanciamento. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso captou isso de imediato, quando disse: “Eu preferia vê-lo no STF”. Em outras palavras: era mais adequado que Moro continuasse sua “forte agenda anticorrupção” como magistrado independente em vez de integrar um governo.
O discurso petista contra Moro sempre foi um discurso de ocasião para salvar um corrupto comprovado. Mas duas decisões de Moro, ao longo da Lava-Jato, arranharam sua imagem. Seis dias antes do primeiro turno, Moro levantou o sigilo de parte da delação do ex-ministro Antonio Palocci, cujo conteúdo o juiz mantinha em segredo há meses — e escolheu divulgar às vésperas da eleição. Em 2016, em outra decisão afoita, revelou trecho de uma conversa telefônica entre Dilma Rousseff e Lula, gravada num momento em que não havia autorização judicial para tal. Com a divulgação, Moro acabou inviabilizando a nomeação do ex-presidente para o cargo de chefe da Casa Civil e, dessa forma, praticamente sacramentou o impeachment da então mandatária. Pela divulgação do telefonema, Moro chegou a receber um pito do STF. Com sua decisão de aderir ao governo Bolsonaro, tudo isso volta à tona, e, agora, sob uma sombra indevida a ameaçar sua imparcialidade de magistrado.
Tanto que réus e condenados na Lava-Jato, assim que Moro anunciou estar indo para o Ministério da Justiça, já passaram a cogitar propor uma enxurrada de recursos pedindo a anulação de suas decisões judiciais, sob a alegação de que foram contaminadas por interesses particulares e eleitorais. “A ida do Moro para a Justiça é um desastre. Ele perde todo o perfil que desenhava de juiz independente. Com esse gesto, estará assumindo uma posição política, e acaba a imagem de imparcialidade. Ficará sob suspeição”, diz o ex-ministro da Justiça José Carlos Dias, que também tem seus interesses: foi advogado do empreiteiro Marcelo Odebrecht, condenado a 39 anos de prisão por Moro.
Já o governo Bolsonaro jogou bem. Com a decisão, o presidente eleito agradou a parcelas importantes da opinião pública, recebeu aplausos do mercado financeiro, que reagiu de forma positiva ao anúncio, e ainda blinda o futuro governo das suspeitas que pairam sobre suas convicções democráticas. “Com Moro, o fenômeno Lava-Jato chega ao poder. Moro agrega credibilidade ao discurso público do Bolsonaro de combate à corrupção e, no governo, será um avalista do Estado democrático”, diz o professor Davi Tangerino, da Fundação Getulio Vargas. “Custaria crer que um juiz federal que jurou respeitar a Constituição e provou que era possível combater a corrupção usando o Estado democrático de direito possa futuramente sucumbir ao discurso antidemocrático.”
À frente da Lava-Jato, Moro inspirava-se na Operação Mãos Limpas, deflagrada na Itália. O magistrado-símbolo dessa cruzada, Antonio di Pietro, também entrou na política — foi ministro do governo de Romano Prodi, deputado e senador. A Mãos Limpas teve um desfecho melancólico: não conseguiu punir os corruptos processados e ainda pavimentou o caminho para a ascensão ao poder de Silvio Berlusconi, um populista de direita. A comparação será inevitável, mas isso não quer dizer que o resultado será o mesmo. A Lava-Jato já está praticamente encerrada. O esquema de corrupção na Petrobras foi amplamente desvendado, corruptores e corruptos foram identificados, julgados e presos — tudo dentro da lei, tudo referendado pelos tribunais superiores. Não há, portanto, que falar em ilegalidade das investigações nem do processo judicial que elevou o Brasil a um estágio superior de civilidade moral. Os corruptos estão na cadeia e devem continuar lá por longos anos.
Moro sempre disse que não tinha vocação para a política. Às vésperas de o STF julgar, em abril, um habeas-corpus que poderia evitar a prisão imediata do ex-presidente Lula, ele estava pessimista. Listava danos pessoais por ter condenado políticos poderosos, os ataques à sua reputação, as ameaças que sofria, a falta de privacidade que o caso lhe impusera. Mais que tudo, era resiliente diante da hipótese de a Justiça revogar, naquela época, a possibilidade de prisão em segunda instância. “Em Brasília, às vezes o pessoal entra numa realidade paralela”, comentou com um amigo. Era uma crítica à influência nociva sobre as instituições. Ex-eleitor de Lula, o juiz sempre foi discreto em relação às suas opiniões e manteve distância dos políticos, à exceção da foto em que apareceu aos sorrisos com o então poderoso tucano Aécio Neves. Sua esposa, a advogada Rosangela Moro, é o contrário. Ativa nas redes sociais, frequentemente publicava mensagens de apoio às ideias de Bolsonaro e festejou sua vitória abertamente.
Cinco dias antes do segundo turno, quando as pesquisas de intenção de voto indicavam vitória de Bolsonaro, Moro se encontrou com Paulo Guedes, o guru econômico do presidente eleito, que lhe perguntou quais características considerava fundamentais para a construção de um novo Ministério da Justiça que tivesse o papel de ampliar o combate à corrupção. Trocaram impressões e, por fim, veio a sondagem. O juiz ficou balançado com o que ouviu — e, ao que parece, começou a mergulhar naquela realidade paralela de Brasília que ele criticava. Nos dias seguintes, pediu conselhos a pessoas próximas sobre o que fazer, sopesou os prós e os contras, até decidir dar seu salto triplo carpado.
A indicação de Moro compõe o trio mais poderoso de nomes ministeriais. Além do juiz, Bolsonaro montou uma equipe com outros dois superministros: Onyx Lorenzoni, que assumirá a Casa Civil e terá controle sobre uma penca de outros órgãos, entre os quais a Secretaria de Governo, que hoje tem status de ministério, e Paulo Guedes, que comandará a Economia, pasta que passa a reunir a Fazenda, o Planejamento e a Indústria e Comércio Exterior. Os dois, inclusive, já divergiram sobre o encaminhamento da reforma da Previdência. Para o sociólogo Antonio Lavareda, Bolsonaro forma um governo “absolutamente singular” ao apostar em superministros. O modelo, ao mesmo tempo em que facilita o processo decisório, embute um certo ardil. “O presidente ganha em capacidade operacional, mas, se alguma coisa sair errada, ele sempre poderá dizer que não foi culpa direta dele”, ressalta o cientista político Carlos Pereira, professor da FGV. O ex-superministro José Dirceu, mentor do mensalão no governo Lula, é um exemplo por ter servido de bode expiatório.
Colaboraram Marcela Mattos e Marcelo Rocha
O líder inglês e o combatente da idiotia
Em seu primeiro pronunciamento depois da vitória na eleição presidencial, Jair Bolsonaro sentou-se na sala de casa, ao lado da esposa, Michelle, e de uma tradutora da língua brasileira de sinais (libras). Sobre a mesa, no cenário montado com a ajuda do filho Carlos Bolsonaro, havia quatro livros. Dois deles serviram de referências óbvias do candidato: uma versão simplificada da Bíblia (leia a matéria) e a Constituição. O terceiro era o segundo volume das memórias de Winston Churchill, primeiro-ministro inglês durante a II Guerra Mundial. Resiliente e teimoso, Churchill liderou sua nação com firmeza inquebrantável no combate ao nazifascismo. Bolsonaro está lendo o livro e passou a ver Churchill como uma referência. O presidente eleito ergueu o exemplar rapidamente em seu discurso, enquanto prometia se inspirar em “grandes líderes mundiais”. Curiosamente, na campanha, ou mesmo na trajetória parlamentar de Bolsonaro, Churchill nunca ocupou um lugar especial.
O quarto livro era O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota, de Olavo de Carvalho. O autor sempre pertenceu, digamos assim, ao baixo clero da filosofia tanto quanto Bolsonaro na política. Seu livro de combatente da idiotia é uma coletânea de artigos sobre temas como juventude, socialismo, cultura, aborto, ciência e religião, que inspira uma legião de direitistas.
A Câmara dos Deputados, por exemplo, terá uma bancada de pelo menos dez ex-alunos de Carvalho. Entre eles estão Bia Kicis (PRP-DF), Marcel van Hattem (Novo-RS) e Paulo Eduardo Martins (PSC-PR). Para Carvalho, a esquerda apropriou-se do governo, do estamento cultural, da imprensa e de praticamente todos os partidos políticos, em um conluio com organizações criminosas. Ele também é o pai do boato da fraude nas urnas eletrônicas. “São milhares de urnas programadas, uma a uma, para anular os votos dados a um dos candidatos”, escreveu antes do primeiro turno, insinuando que prejudicariam Bolsonaro. Na véspera da eleição, publicou um post numa rede social que tinha o seguinte teor: “O PT e seus associados — PCC, Comando Vermelho, Hezbollah, Farc, Foro de São Paulo, Maduro, O Globo, Folha de S.Paulo etc. — são a maior organização criminosa que já existiu no mundo”. Depois da vitória de Bolsonaro, não demonstrou tanta preocupação com as urnas programadas para a fraude.
A aproximação entre o presidente eleito e Olavo de Carvalho começou em 2014, intermediada pelos filhos de Bolsonaro. Já naquele ano, Carvalho encorajou o deputado a disputar a Presidência. A admiração mútua cresceu com o tempo. “O Olavo de Carvalho vai para o Ministério da Cultura”, chegou a dizer, na pré-campanha, o agora presidente eleito. Os dois conversaram logo após a vitória. Carvalho mora nos Estados Unidos e não pretende voltar ao Brasil: “Sou apenas um amigo da família Bolsonaro. Não sou um assessor, não sou um ministro nem serei jamais, graças a Deus”.
Gabriel Castro
“A máquina de moer petistas”
O estudante de direito André Marinho, de 24 anos, foi um espectador privilegiado dos bastidores da campanha de Jair Bolsonaro. Na casa dele, no Rio de Janeiro, funcionou o bunker da campanha vitoriosa. Ele foi um dos primeiros a saber do atentado contra o candidato e a testemunhar o drama da família. No segundo turno, acompanhou de perto o trabalho da equipe que desenvolvia as ações de marketing, epicentro nervoso da campanha de Bolsonaro. Filho do empresário Paulo Marinho, um dos colaboradores mais próximos do presidente eleito, André virou um assessor informal de um comitê também informal. Em entrevista ao editor Thiago Bronzatto, o estudante, que é um talentoso imitador de Bolsonaro, conta que foi ele quem atendeu a ligação do presidente Donald Trump. A seguir, os principais trechos de sua entrevista.
O BUNKER — “Minha casa foi a sede de momentos históricos no último mês. A gravação dos programas eleitorais, as principais reuniões, o pessoal de marketing — uma equipe de 35 pessoas. Funcionava tudo aqui, onde antes era uma sala de ginástica. Eu a chamava de ‘a máquina de moer petistas’. Eram só produções anti-PT todos os dias. É coisa de louco, surreal.”
O ATENTADO — “Estávamos em casa quando a notícia chegou. A primeira providência que meu pai tomou foi sugerir que a gente fosse com a primeira-dama para Juiz de Fora. Aí, a gente chegou ao hospital. Ela entrou na sala onde se encontrava o presidente. Estava tudo escuro. Clima pesado. Ela desabou. Ele tinha os lábios ressecados, um aspecto pálido, quase cadavérico. Aí, disse: ‘Ô garoto, se você continuar me imitando, vou cobrar direitos autorais, tá o.k.?’. Foi impressionante.”
A CAMPANHA — “Eu diria que, depois do atentado, o momento mais tenso foram os dois últimos dias. O PT, avaliamos, tinha achado o tom certo para nos desconstruir e provocar uma hemorragia de votos. Foi um momento em que ficamos reunidos até altas horas. A gente via o programa do PT e via o nosso. Houve uma reunião e ficou decidido que tinha de voltar a turbinar o antipetismo. Tanto que nos últimos dois programas o tom foi mais acalorado.”
TRUMP — “O Gustavo Bebianno me selecionou para ser o cara que ficaria com o telefone que o Itamaraty deu a todas as embaixadas e consulados para ligarem. No domingo, quando eu estava saindo para comemorar no meio da galera, o cônsul-geral americano Scott Hamilton ligou e disse que o presidente Trump queria falar com Bolsonaro. Foi uma conversa rápida. Ele (Jair) disse: ‘Você terá pela primeira vez, desde o período militar, um presidente brasileiro que será um aliado na América Latina’. Trump respondeu: ‘Sinto que seremos grandes amigos’.”
DIVERGÊNCIAS — “Por mais que haja divergências, está todo mundo muito unido num só propósito de fazer um governo genuinamente liberal. É muito nítido que o presidente tem a palavra final. Bolsonaro consegue pacificar momentos de contenção com clareza. É bem surpreendente a forma como ele consegue ser decisivo.”
Publicado em VEJA de 7 de novembro de 2018, edição nº 2607