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Tratar dependente de crack sem internação é impossível

Clínicas particulares consideram 105 dias de internação o mínimo necessário para o primeiro ciclo contra a dependência química. Na rede pública estadual do Rio, atendimento é apenas ambulatorial

Por Pâmela Oliveira e Cecília Ritto
23 out 2012, 11h42

“É difícil manter o paciente em tratamento ambulatorial. O paciente simplesmente não vai ao tratamento. A única forma de tratar o vício do crack é com a internação”, diz Jaber

Entre os muitos caminhos possíveis para combater o crescimento devastador do crack nas cidades brasileiras, pelo menos dois são inescapáveis: é preciso combater o tráfico e os pontos de venda; e é preciso tratar urgentemente os dependentes químicos, grande parte desse grupo formada por menores de idade oriundos de famílias pobres. Em relação ao crack, nada é simples ou barato. E no momento, no Rio de Janeiro, o descompasso entre essas duas ações torna os esforços quase nulos. Como o site de VEJA mostrou ao longo da última semana, o governo do estado empenhou recursos na ocupação da área onde se formou a maior cracolândia do estado, próxima das favelas de Manguinhos e do Jacarezinho. Já no dia seguinte à ocupação, os usuários, mesmo aqueles recolhidos pelas equipes de assistência social, reapareceram nos arredores de outros pontos de venda da droga. Não há como ser diferente: as duas únicas clínicas do estado estavam fechadas, e não há, por enquanto, onde tratar os adultos em situação de dependência.

Sem possibilidade de manter a internação, pacientes interromperam o tratamento. Como os contratos com o estado estavam vencidos, dependentes em recuperação simplesmente receberam alta e voltaram para a rua. A promessa do governo estadual era de, nesta segunda-feira, estabelecer novos contratos com três clínicas, que juntas ofereceriam 150 vagas.

Como toda medida anunciada sem que se tenha de fato a solução para o problema, a retomada do funcionamento das clínicas não aconteceu. O governo do estado informou que “começará a capacitar” esta semana a equipe que atenderá os dependentes nas clínicas de Santa Cruz e de Campo Grande, bairros da zona oeste do Rio, e da cidade de Casemiro de Abreu. Para quem não conhece o eufemismo das versões oficiais, a mensagem é a seguinte: atualmente não existe tratamento adequado. O governo do estado explica que está em curso uma “reestruturação” do estado para o combate aos usuários de drogas, para iniciar o novo tratamento já na próxima semana. Ou seja: em uma semana o governo do estado considera ser capaz de preparar gente para lidar com dependentes da mais mortal das drogas.

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O plano do governo do estado para os dependentes químicos é o seguinte: os usuários que por ventura buscarem tratamento devem procurar um dos Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas, os Caps AD. Nesses locais é possível retirar medicamentos e receber tratamento apenas ambulatorial – o dependente químico pode passar o dia em um Caps, mas não há internação ou pernoite. O trabalho dos psicólogos é criar um vínculo com o paciente para estimular o retorno dele. “Não é punição ou recolhimento”, reforça Fernanda San Martin, coordenadora do Observatório Estadual de Gestão e Informação Sobre Drogas do governo do Rio. A equipe desses centros poderá encaminhar os pacientes para outro estágio do tratamento, no Centro de Atendimento Regionalizado para Situação de Álcool e Outras Drogas, estrutura ainda a ser criada, atrelada às secretarias de Assistência Social e Saúde.

Nos centros regionais, quando inaugurados, os dependentes passarão por avaliação médica e entrevistas com equipe multidisciplinar. As portas continuarão abertas para que os usuários saiam quando quiserem. “Todas as clínicas do estado estão abertas. Os lugares devem garantir a liberdade”, diz Fernanda, na contramão do que as clínicas particulares têm feito para conseguir tratar esse tipo de paciente.

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Mesmo em condições ideais o tratamento do crack é um caminho tortuoso e dificílimo para paciente, famílias e profissionais envolvidos. Responsável por uma clínica na zona oeste do Rio onde há permanentemente cerca de 50 dependentes em tratamento para se livrar da droga, o médico Jorge Jaber compara o comportamento do usuário de crack ao de um animal em busca de alimento. “O dependente do crack ouve, mas não escuta. Vê, mas não enxerga. O mecanismo de atenção está totalmente voltado para obter a substância. Da mesma forma que um animal faminto, que só enxerga a comida, a única coisa que o usuário enxerga é o crack”, afirma Jaber, presidente da Associação Brasileira de Alcoolismo e Drogas.

A clínica coordenada por Jaber recebe majoritariamente clientes de planos de saúde. Em clínicas particulares, o custo para o ciclo de tratamento de 105 dias chega a 25 mil reais. Este período inicial, ressalta Jaber, é o mínimo para assegurar o início da recuperação. E ainda assim as chances de sucesso na primeira internação são pequenas: só 30% dos dependentes que recebem tratamento apenas uma vez conseguem não voltar. A maioria precisa de sucessivas internações. Ainda assim, a vigilância deve ser permanente para o resto da vida, alerta Jaber.

“O crack é uma substância com alto poder de causar dependência. Uma pessoa que experimenta e fuma quatro ou cinco vezes em um dia já se torna praticamente dependente. E o tratamento é mais difícil. É mais longo do que o de um dependente em cocaína, por exemplo. Em média, depois de 15 dias de desintoxicação, o usuário de crack precisa de mais 90 dias internado para conseguir desenvolver mecanismos psicológicos para evitar voltar à droga. É o tempo básico. Já o usuário de cocaína precisa de 45, em média”, afirma.

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Dado o poder de criar dependência, é improvável que apenas o tratamento ambulatorial seja capaz de reverter o quadro do paciente. E a interrupção do tratamento, como ocorreu nas clínicas do estado do Rio, joga fora qualquer avanço. “É difícil manter o paciente em tratamento ambulatorial. O paciente simplesmente não vai ao tratamento. A única forma de tratar o vício do crack é com a internação”, diz Jaber.

E aí surge outra explicação para os efeitos pífios das políticas públicas contra o crack até o momento: na rede pública de saúde do estado do Rio o atendimento é apenas ambulatorial. Ou seja, o paciente chega, recebe os cuidados médicos e sai quando quer, sem receber o acompanhamento psiquiátrico necessário para reduzir as chances de, novamente, buscar a droga.

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Para todo o estado do Rio, havia, antes do fim do contrato com as duas clínicas de dependência química para adultos, 180 vagas para internação disponíveis para todo tipo substância. O total de usuários de crack só na capital é um chute: seriam 3.000 os viciados, entre adultos e crianças. Apesar de o total de vagas no estado ser ínfimo, não chega a haver superlotação. Afinal, o dependente de crack raramente busca tratamento.

A chegada do crack à classe média, no entanto, já cria uma fila para tratamento na rede particular. Pela primeira vez em 20 anos, a Clínica Jorge Jaber, que tem capacidade para receber 70 pacientes, tem fila de espera. “O crack não é mais droga de pobre. Recebo com frequência pacientes de classe média que já foram retirados por suas famílias das ruas, de cracolândias. É muito triste. Essa turma do crack se vende por qualquer coisa, é um negócio deprimente”, afirma.

“Geralmente o usuário da classe média que se vicia em crack já usou maconha, álcool ou cocaína sem ficar dependente de imediato. Então acredita que tem um domínio e experimenta. Mas um fim de semana já é suficiente para se viciar”, diz, acrescentando que 30% dos que concluem o tratamento internado pela primeira vez não têm recaídas nos seis meses posteriores. Na cocaína, o índice é de 66% a 72% em 1 ano e 8 meses após a alta da clínica.

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O médico alerta que o tratamento é para sempre. “O perigo é para sempre. É como nascer. Depois que caímos no mundo estamos condenados a viver nele. A única hipótese que nos tira do mundo é a que não queremos, a morte”.

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