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Queda de dois ministros em apenas um mês deixa Saúde à deriva

O ministério vive sem rumo e em ritmo de lentidão diante do avanço rápido da Covid-19

Por Mariana Zylberkan, João Pedroso de Campos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 14h32 - Publicado em 22 Maio 2020, 06h00

Passados dois meses do reconhecimento pelo governo federal do estado de pandemia provocado pelo novo coronavírus, o Brasil ainda não tem uma coordenação centralizada nem uma estratégia clara — menos ainda, um discurso unificado para enfrentar a doença. Não tem sequer um ministro da Saúde, depois que dois deles caíram em um mês por desavenças com Jair Bolsonaro. O presidente deveria ser o líder da operação, mas se notabilizou por ser ele próprio um empecilho à mitigação do problema. Primeiro, combateu o isolamento social, a única forma efetiva de achatar a curva de novos casos de infectados, o que levou à queda de Luiz Henrique Mandetta. Depois, fez questão de impor o uso da cloroquina, medicamento que vende como uma solução mágica para o tratamento da Covid-19, coisa que a ciência está longe de ratificar. Isso precipitou a saída do substituto de Mandetta, Nelson Teich, que durou apenas 29 dias no cargo. Com as sucessivas trombadas e trocas no comando, os problemas na pasta se acumulam de maneira preocupante.

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Não faltam exemplos de ações importantes paralisadas ou atrasadas neste momento. O primeiro hospital de campanha federal, em Goiás, segue fechado mais de um mês após ter sido construído. Os respiradores prometidos desde março começaram a aterrissar nos estados só na última semana, mas a conta-gotas: dos 15 000 orçados, apenas 841 foram entregues. No Rio de Janeiro, onde está a maioria dos hospitais geridos pelo governo federal (seis), foi necessária uma decisão da Justiça local para obrigá-los a receber pacientes com Covid-19, até então recusados pela direção dessas unidades — uma diretoria foi afastada por omissão. A São Paulo, estado que concentra 24% das mortes, não chegaram “sequer um avental e uma máscara”, nas palavras do governador João Doria (PSDB). O mais tristemente irônico exemplo da confusão nos gabinetes de Brasília: embora a nova gestão do Ministério da Saúde se posicione a favor de abreviar o isolamento social (seguindo os desejos de Bolsonaro), os brasileiros continuam recebendo telefonemas automáticos em nome da pasta com gravações que trazem pedidos para que fiquem em casa — isso ocorre porque o governo não revogou um contrato do serviço assinado nos tempos de Mandetta.

Brazil’s Health Minister Teich arrives to attend a news conference, amid the coronavirus disease (COVID-19) outbreak in Brasilia
O BREVE - Nelson Teich: demissão depois da pressão de Bolsonaro por cloroquina (Adriano Machado/Reuters)

O estado de enfermidade do ministério, dono do maior orçamento do governo federal (125,6 bilhões de reais para este ano), acontece no momento em que há uma disseminação veloz da doença. Em 20 de abril, o relógio da pandemia contava 40 581 casos e 2 575 mortes. Um mês depois, já eram 291 579 contaminados e 18 859 mortos. Além de servir de farol para o combate ao vírus, com planejamento, estratégia e distribuição organizada de dinheiro, profissionais e equipamentos, o Ministério da Saúde deveria ser o articulador do esforço nacional com estados e municípios. Caberia ao órgão, por exemplo, determinar isolamentos regionais ainda no começo da pandemia, quando os casos se concentravam no Sudeste. Em vez disso, estimulado até pelo discurso belicoso de Bolsonaro em relação aos governadores, o distanciamento entre Brasília e o resto do país só se aprofundou, o que gerou consequências catastróficas. “Temos vários picos de coronavírus em períodos diferentes pelo Brasil, e só uma gestão centralizada seria capaz de frear essa tendência”, diz Gastão Wagner, médico sanitarista e professor de saúde coletiva da Unicamp. Diante da falta de organização, vem sendo engendrado o enfrentamento “à brasileira” da Covid-19, uma espécie de política de cada um por si e o presidente contra todos, com estados e municípios definindo suas regras, o que tem se mostrado ineficaz ante do alastramento do problema.

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A desordem produz reuniões intermináveis na pasta em que técnicos se veem obrigados a explicar o funcionamento do SUS a uma legião de novatos no assunto, como os vários militares que vêm ocupando cargos por lá desde que Bolsonaro nomeou o general Eduardo Pazuello como o número 2 do ministério. Soldado obediente, ele chegou com a ordem de fazer a liberação a jato do uso da cloroquina para o tratamento de pacientes com sintomas leves. Missão dada, missão cumprida. Para refazer o protocolo de utilização do medicamento, a primeira medida do general em sua interinidade como ministro, foram gastas cerca de vinte horas de trabalho. O esforço culminou na demissão de Denizar Vianna, secretário de Ciência, Tecnologia e Insumos Estratégicos da pasta. Outro técnico importante da equipe de Vianna, o médico e biofísico Antônio Carlos Campos de Carvalho também pediu demissão pelo mesmo motivo. “Foi uma decisão precipitada, saí porque não assinaria o novo protocolo”, disse.

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CONSULTOR - Mandetta e Helder Barbalho: ajuda para conter crise no Pará (Marco Santo/Ag.Pará/.)

No momento em que mesmo os melhores médicos do planeta enfrentam dificuldades para lidar com o novo vírus, o Ministério da Saúde brasileiro virou um exército de diletantes sobre o assunto em plena escalada fulminante da doença. Além de Pazuello, dezesseis militares foram colocados em cargos estratégicos. Outros postos seguem à espera de nomeação, ocupados por novatos que atuam de forma interina. A militarização do órgão é justificada pelo conhecimento geográfico que os oficiais têm de áreas remotas do país, onde o vírus vêm se alastrando com mais velocidade e o acesso é difícil, como a Região Norte. Dentro dessa lógica, tal expertise facilitaria a logística do trabalho de distribuição de equipamentos. Na prática, porém, não há suprimentos suficientes a ser enviados devido à incapacidade do ministério para concluir as compras no agora disputadíssimo mercado internacional.

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Diante de uma pasta à deriva, alguns governos estaduais têm recorrido até a Mandetta em busca de orientações, caso do governador do Pará, Helder Barbalho (MDB), que o chamou para uma videoconferência no momento em que o estado avança para se tornar o próximo epicentro do coronavírus no país. Outros governadores criticam abertamente a dificuldade em conseguir ajuda do ministério e lançam mão de recursos próprios para obter equipamentos emergenciais. Em São Paulo, João Doria, desafeto de Bolsonaro, disse ser “inacreditável” a falta de um ministro e chegou a cogitar “seletividade política” na distribuição de recursos. Na última quinta, 21, baixou um pouco o tom diante da promessa do governo federal de enviar ao estado 600 respiradores e habilitar 1 817 novos leitos. Na capital paulista, cerca de 15 milhões de reais destinados à extensão do funcionamento de 131 unidades de saúde por três meses também não foram repassados, embora o gasto já tenha sido autorizado pela pasta.

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POR CONTA PRÓPRIA - Ceará: ventiladores comprados diretamente da China (Mateus Dantas/Zimel Press/.)

Além de não distribuir recursos com a velocidade exigida pela circunstância, o governo federal atua em alguns casos como competidor dos estados na aquisição de materiais. Segunda unidade da federação com mais casos da doença no país, o Ceará comprou com recursos próprios 94 respiradores, mas teve de ir à Justiça para conseguir a liberação deles a conta-gotas depois que o ministério obteve liminar para que todos os equipamentos feitos no Brasil fossem vendidos à pasta. Com uma ocupação de 86% dos leitos de UTI, o Ceará precisou adquirir ainda diretamente da China 500 ventiladores. Em Goiás, o Ministério da Infraestrutura concluiu a construção do primeiro hospital de campanha federal, na cidade de Águas Lindas de Goiás, em 22 de abril, mais de duas semanas depois do início da obra. Até hoje, porém, os 200 leitos não foram abertos aos pacientes por causa de trâmites burocráticos no Ministério da Saúde para a transferência da unidade ao governo goiano, que vai operá-­la. De acordo com a gestão do governador Ronaldo Caiado (DEM), a União também havia se comprometido a entregar o local com quarenta unidades de UTI equipadas com respiradores, mas não conseguirá cumprir o combinado. Já o outro hospital de campanha federal prometido pelo ministério, ainda na gestão Mandetta, nem sequer começou a ser erguido em Manaus, onde o sistema de saúde colapsou. O prefeito Arthur Virgílio (PSDB) duvida que a promessa saia do papel.

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Em meio a tantos problemas, até a última quinta, 21, não existia uma definição sobre se Bolsonaro escolheria um novo titular para a pasta. Outros países fizeram trocas no comando da saúde neste momento por razões políticas pessoais ou de gestão, como Bolívia, Equador e Holanda. Mas a queda de dois ministros em curto espaço de tempo é uma triste exclusividade brasileira. Durante a maior tempestade sanitária dos últimos 100 anos, o país sofre com a falta de liderança e com os desmandos do presidente. Na última terça, 19, o mesmo dia em que o número de mortos por aqui ultrapassou a barreira dos 1 000 casos, Bolsonaro gastou tempo em uma live fazendo piada com uma rima forçada de cloroquina com tubaína (leia a frase na seção Veja Essa). Ele ri — e a nação chora uma tragédia diária, sob os olhares surpresos e preocupados do mundo inteiro com a catástrofe que vem acontecendo por aqui.

Publicado em VEJA de 27 de maio de 2020, edição nº 2688

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