Quanta coincidência
Os personagens que podem inocentar (ou não) o senador Flávio Bolsonaro da suspeita da “rachadinha” têm um ponto em comum: todos desapareceram
No restaurante Bairrada Adega Gourmet, na zona central do Rio de Janeiro, a clientela e os funcionários já notaram que a dona não aparece no local há algum tempo. Alguns dizem que ela mudou de cidade. Outros afirmam que ela simplesmente desapareceu. O administrador do negócio, Antonio Airton da Rocha, tenta explicar enquanto confere as notas do caixa, repetindo-se diversas vezes e notoriamente incomodado: “Parece que ela está de férias”. A empresária Raimunda Veras Magalhães e Airton da Rocha são sócios no restaurante, mas ele diz que nada sabe sobre o paradeiro dela. “Ela não me deu mais notícia, não”, conta. A última conversa entre os dois aconteceu há mais de um mês. Dias depois, quando VEJA voltou a lhe pedir informações, Rocha enviou a seguinte mensagem por celular: “Quando eu fizer contato com ela, te falo, o.k.?”. Até o fechamento desta edição, Rocha não tinha notícias de Raimunda, que há meses também não aparece na própria residência, na Zona Oeste do Rio.
A dona do restaurante é uma das oito pessoas que trabalhavam no gabinete do ex-deputado estadual e agora senador Flávio Bolsonaro, do PSL do Rio. Ela e os outros sete ex-colegas saíram de cena desde que veio a público que depositavam rotineiramente dinheiro na conta bancária do policial Fabrício Queiroz, o ex-motorista do parlamentar. As transações, que ocorriam em datas próximas do pagamento dos salários, chamaram a atenção do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), órgão do governo responsável por fiscalizar movimentações de dinheiro atípicas. Uma investigação foi instaurada no fim do ano passado para apurar se Raimunda (que depositou 4 600 reais) e outros auxiliares de Flávio Bolsonaro transferiam parte de seus salários a Queiroz, e se este, por sua vez, repassaria os recursos ao antigo patrão. A ilegalidade, comum entre políticos desonestos para aumentar a própria renda, é conhecida como “rachadinha”. A suspeita de que o filho do presidente da República pode ter se valido da trapaça para engordar a própria conta deu ares de escândalo ao caso.
Nos últimos dois meses, VEJA visitou catorze endereços atrás das testemunhas que podem inocentar — ou não — Flávio Bolsonaro. A vizinhança de Wellington Sérvulo Romano da Silva, que repassou 1 500 reais para a conta do ex-motorista, diz que depois do escândalo não o viu mais circulando pelo prédio. Seu apartamento, na Zona Oeste, está vazio e trancado desde então. Alguns moradores especulam até que o funcionário do gabinete tenha se mudado para o exterior. Luiza Souza Paes, que repassou 3 542 reais, também sumiu. Sua casa, num subúrbio na Zona Norte do Rio, parece abandonada. Há encartes de supermercados amontoados na porta e ninguém atende o telefone ou a campainha. De Jorge Luís de Souza, que repassou 3 140 reais e mora numa favela da Zona Norte, o máximo que se pode observar é a presença de um Celta preto estacionado nas imediações da casa. Nada mais.
Agostinho Moraes da Silva foi o funcionário que menos depositou dinheiro na conta do ex-motorista, segundo o relatório do Coaf — apenas 800 reais. Procurado quatro vezes em sua residência, na Zona Sul do Rio, e na casa de uma irmã, ele é mais um que desapareceu. Na quarta-feira 6, um vizinho relatou que faz semanas que não vê o ex-servidor. O carro de Agostinho Moraes da Silva permanece estacionado em frente ao seu prédio, mas ninguém tem pista sobre seu paradeiro. Familiares dizem que ele está sem celular, incomunicável. “Agostinho é subsíndico do prédio. A gente não consegue falar com ele nem para resolver os problemas do dia a dia”, reclama um morador.
A própria família de Fabrício Queiroz, o pivô do escândalo, também mergulhou em discrição absoluta. Na residência do ex-motorista, na Zona Oeste do Rio, as janelas estão trancadas. A casa fica num beco estreito, coberto por fios elétricos. Os vizinhos afirmam que ninguém aparece por lá há meses. “Quando a cara dele surgiu na TV, ele sumiu daqui”, conta um morador, que, como a maioria dos entrevistados para esta reportagem, pede para não ser identificado. Márcia Oliveira Aguiar, a mulher de Queiroz, que lhe repassou 18 864 reais, e a filha Nathália, que transferiu 84 110 reais ao pai, também não estão localizáveis. A família, segundo o advogado Paulo Klein, está passando uma temporada em São Paulo desde o fim do ano passado, quando o ex-motorista foi submetido a uma cirurgia para extração de um tumor do intestino. Até onde se sabe, Queiroz continua na capital paulista fazendo acompanhamento médico, mas em local incerto.
VEJA conseguiu contato com o policial Jorge Luís de Souza, que depositou 3 140 reais na conta do ex-motorista, porém não ouviu explicação alguma. Sua casa, em Rio das Ostras, localizada a cerca de 150 quilômetros da capital fluminense, tem a aparência de um local abandonado, com as janelas permanentemente fechadas, mas o morador continua lá. Após atender à reportagem pelo interfone, Jorge Luís de Souza escondeu o rosto atrás do portão e perguntou o motivo do contato. Questionado sobre a razão da transferência para a conta de Queiroz, ele se irritou, disse que não fala sobre o assunto e se fechou em copas.
Desde julho do ano passado, quando a história começou a ser investigada, busca-se uma resposta a uma pergunta singela: por que os funcionários do gabinete fizeram pagamentos ao ex-motorista? As transações, em si, nada têm de ilegal, caso o motivo dos pagamentos tenha sido legítimo. Acontece que os investigadores até hoje não conseguiram obter uma resposta devido ao sumiço coletivo. Fabrício Queiroz, o ex-motorista, duas vezes intimado a depor no Ministério Público, não compareceu — e, agora, está pedindo para depor por escrito. Em dezembro, deu uma entrevista ao SBT e disse que sua movimentação — que chegou a 7 milhões de reais em sua conta bancária entre 2014 e 2017 — resultava da compra e venda de carros. O suposto comércio de veículos não explica, porém, por que uma parte desses recursos vinha de pequenas transferências de assessores do gabinete de Bolsonaro. Não esclarece também por que havia depósitos de sua filha e de sua mulher.
Na quarta-feira 6, o Ministério Público do Rio de Janeiro retomou as apurações do caso. Elas haviam sido suspensas em janeiro por decisão de liminar do Supremo Tribunal Federal. O senador Bolsonaro argumentou que a investigação era ilegal e que está sendo alvo de uma perseguição política destinada a desgastar o governo de seu pai. Uma das primeiras providências do promotor será tentar ouvir os ex-funcionários do parlamentar. Raimunda Veras Magalhães encabeça a lista. Além de dona do restaurante Bairrada Adega Gourmet, ela é mãe de Adriano Magalhães da Nóbrega, ex-capitão do Batalhão de Operações Especiais (Bope), que está com a prisão decretada, acusado de integrar uma milícia responsável por crimes como agiotagem, extorsão e assassinato. O policial, tal como os oito ex-funcionários, também está desaparecido.
Publicado em VEJA de 13 de fevereiro de 2019, edição nº 2621
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