Prefeito investigado em escândalo vai comandar área de comunicação de Lula
No troca-troca de campanha petista, a função será assumida por Edinho Silva, alvo de inquérito que apura fraude na compra de respiradores na pandemia
O fogo amigo é uma característica conhecida do PT e já atingiu figuras ilustres do partido, como os ex-ministros José Dirceu e Antonio Palocci e até a ex-presidente Dilma Rousseff, cujo governo ardeu sob críticas e sabotagens de correligionários até ser derrubado por um processo de impeachment capitaneado pelo MDB. Nesta campanha eleitoral, que promete ser a mais acirrada dos últimos tempos, o tiroteio interno já começou. Em razão de uma disputa fratricida por poder e dinheiro, a direção partidária decidiu trocar o marqueteiro da campanha presidencial de Lula e, nos próximos dias, deve mudar também o coordenador de comunicação da campanha — o prefeito de Araraquara, o petista Edinho Silva, substituirá Franklin Martins, que não é filiado ao PT e havia sido escolhido pelo ex-presidente Lula. Ex-ministro da Comunicação de Dilma, Edinho assumirá a função num momento em que Jair Bolsonaro encurta a desvantagem em relação a Lula. Uma de suas missões será tentar reagir a esse movimento. Outra será reduzir o desgaste que ele mesmo, Edinho, pode representar para as pretensões eleitorais de Lula.
Apoiado para assumir a função de coordenador por colegas do PT de São Paulo que têm forte influência na máquina partidária, o prefeito é investigado por suposta participação num esquema de desvio de recursos públicos durante a pandemia de Covid-19. O tema é sensível, já que Bolsonaro pretende explorar, como fez em 2018, toda e qualquer denúncia de corrupção que envolve Lula e seus aliados, tenha ela fundamento ou não. O nome de Edinho aparece no meio de um inquérito em curso no Superior Tribunal de Justiça (STJ) que apura uma fraude de 48,7 milhões de reais na tentativa de compra de 300 respiradores chineses pelo Consórcio Nordeste, grupo que os bolsonaristas sempre quiseram, sem sucesso, que fosse investigado na CPI da Pandemia do Senado. O dinheiro foi pago para a empresa Hempcare, que não entregou os produtos. Segundo as investigações, quando da contratação, o coordenador do Consórcio Nordeste, Carlos Gabas, ex-ministro da Previdência no governo do PT, acertou com a Hempcare a doação de respiradores, avaliados em 4 milhões de reais, para a prefeitura de Araraquara, comandada Edinho, seu amigo e antigo colega de governo. Seria uma espécie de comissão.
Com base nessa informação, em dezembro passado a CPI da Covid da Assembleia Legislativa do Rio Grande do Norte pediu o indiciamento de Edinho por envolvimento na fraude na compra dos respiradores. Depois desse contratempo político, houve o contratempo jurídico. Na semana passada, a Polícia Federal deflagrou uma operação para colher mais provas sobre o caso, que tramita no STJ porque um dos principais suspeitos de participação na falcatrua é outro petista, o governador da Bahia, Rui Costa. Conforme revelado pelo site de VEJA, Costa alegou em depoimento à Polícia Federal ter contratado a Hempcare, que vende produtos à base de maconha, porque, entre outros motivos, não domina bem a língua inglesa. Já a dona da Hempcare, Cristiana Taddeo, alegou à PF que tentou comprar a mercadoria na China, mas não conseguiu. Depois, pagou 25 milhões de reais a um fornecedor brasileiro, chamado Paulo de Tarso Carlos, que não entregou os produtos. Ela também teria sido vítima do golpe. Os investigadores pensam diferente e usam interceptações telefônicas autorizadas pela Justiça como evidências de que Cristiana e a Hempcare agiram em conluio com os petistas, inclusive com Edinho Silva, para realizar a fraude.
Numa das gravações, quando temia ser presa pela polícia, a empresária liga para uma pessoa próxima a Edinho Silva para pedir ajuda. Esse interlocutor diz que comentou com o prefeito que estava conversando com Cristiana e que os dois “estão caminhando juntos nessa parada para ver se ela consegue reaver esse dinheiro que deu a Paulo”. O interlocutor do prefeito também afirma que Edinho Silva está aterrorizado com o empresário Paulo de Tarso e chegou a falar que “precisam dar um jeito desse cara correr de Araraquara”. Em outro trecho, o mesmo interlocutor declara que Edinho sugeriu a contratação de um advogado para Cristiana, um promotor aposentado da confiança dele, que não cobraria mais de 10 000 reais pelo serviço. Em resposta, Cristiana fala que levantaria os recursos para contratar o defensor sugerido. A transcrição de uma das escutas detalha essa combinação. Diz o trecho: “Edinho entende que é um cara que acaba de se aposentar do Ministério Público, é professor de uma universidade lá em Araraquara, e Cristiana vai ter esse tipo de garantia, pessoa próxima que o prefeito vai poder cobrar, porque ele (Edinho) falou que, se o Paulo está dando esses golpes, nem ele (Edinho) tem esperança de receber os cinco ou dez (possivelmente respiradores)”.
Edinho Silva já respondeu a inquérito no Supremo Tribunal Federal (STF) por suspeita de envolvimento com doações ilícitas durante a campanha à reeleição da presidente Dilma Rousseff, em 2014, quando desempenhou a função de tesoureiro. O inquérito foi arquivado. Procurado, o prefeito informou que não foi convidado para a campanha. Sobre a compra dos respiradores, ele não quis falar. Até o início de abril, o prefeito estava escalado para trabalhar na campanha de Fernando Haddad ao governo de São Paulo (leia a entrevista nas Páginas Amarelas). Sua ascensão à equipe de Lula foi resultado de um embate dentro do PT e da própria coordenação de campanha do ex-presidente. Ex-ministro de Comunicação de Lula, Franklin Martins, um outsider na legenda, vira e mexe faz críticas aos integrantes do partido e não costuma receber com boa vontade as ressalvas à sua atuação. Em conversas reservadas, também é criticado por pedir mais dinheiro do que a sigla pode pagar. Esse estranhamento não é de hoje, e Franklin sempre se manteve no jogo por ter prestígio com Lula, mas a situação começou a mudar. Petistas de São Paulo, como o ex-prefeito Emídio de Souza e o deputado Jilmar Tatto, secretário de comunicação da legenda, passaram a questionar o desempenho de Franklin como coordenador de comunicação de Lula.
A ofensiva deu resultado. Primeiro, a dupla, com o apoio de outros colegas, conseguiu a demissão do marqueteiro escolhido por Franklin para tocar a campanha do ex-presidente, Augusto Fonseca. Agora, aguarda a formalização da entrada de Edinho Silva no lugar dele, que, se depender só de Lula, continuará na coordenação de campanha como uma espécie de conselheiro político. A troca não deixa de ser uma concessão do ex-presidente. Em março, numa reunião em São Paulo, Lula deixou claro que quem decidia os rumos da campanha era ele, afirmou que não delegaria a tarefa ao PT e ainda espicaçou alguns colegas de partido, como Jilmar Tatto, segundo um dos participantes do encontro. Estavam presentes a presidente, deputada Gleisi Hoffmann, Franklin Martins, Augusto Fonseca e dois sócios do marqueteiro, além de um assessor de imprensa do Instituto Lula. “O Lula falou o que ele queria na campanha e disse que não desejava o PT comandando porque ele não confia em quem estava na linha de frente, o Jilmar Tatto. Na conversa, foi bem claro. Ele queria fazer a campanha dele, não a campanha que o PT queria fazer”, disse a VEJA um dos presentes.
Apesar da troca, poucas pessoas dentro do PT imaginam uma guinada. Prevalece a aposta de que o ex-presidente continuará dando as cartas, como sempre fez, inclusive na comunicação. A área é uma espécie de calcanhar de aquiles eleitoral dos petistas, que preveem levar outra surra de Bolsonaro nessa seara. Entre outros motivos, porque o partido não conseguiu montar uma estrutura nas redes sociais e nos aplicativos de trocas de mensagem com tanta capilaridade e combatividade como a organizada pelo adversário. Na falta de estrutura, Lula quer pegar carona no prestígio de influenciadores digitais. Quer que eles façam o serviço que deveria ser feito pelo PT. Na última terça-feira, por exemplo, o ex-presidente postou a foto de um encontro dele com a advogada e influencer Deolane Bezerra, celebridade no universo digital. A reação dos bolsonaristas foi imediata. Eles replicaram a imagem, só que acompanhada de um vídeo no qual Deolane diz, com fervor quase religioso e cheia de orgulho, que “gosta de advogar para bandido”. Enquanto o PT arde em disputa interna e fogo amigo, Bolsonaro avança nas pesquisas e domina o debate nas redes sociais. A mera troca do coordenador de comunicação não resolverá a situação.
O prefeito Edinho Silva, por intermédio de sua advogada, enviou a seguinte nota a VEJA:
“Edinho Silva lamenta que tenha sido envolvido no relatório final da CPI da Covid-19 processada no âmbito da Assembleia Legislativa do Estado do Rio Grande do Norte. Inicialmente, Edinho foi convocado a comparecer à comissão na condição de testemunha e, após decisão exarada pelo Tribunal de Justiça potiguar garantindo direito decorrente da autonomia e independência entre os poderes que o cargo de prefeito lhe confere, não participou do depoimento. Ao final dos trabalhos, contudo, em franca violação à decisão judicial acima mencionada, a comissão incluiu o prefeito no rol de indiciados pela suposta falta de explicações sobre os fatos. A CPI instaurada não tem competência para convocar, e menos ainda, para indiciar chefes do Poder Executivo, ainda mais de outros estados da Federação. As medidas cabíveis contra o indiciamento, inclusive, já foram tomadas. Quanto aos fatos sob apuração, registra que durante o ano de 2020, enquanto o município de Araraquara se empenhava no enfrentamento à Covid-19 com inúmeras medidas de restrição social e de estruturação no sistema de saúde em meio à decretação de estado de calamidade pública, foi recebida proposta espontânea de doação de aparelhos respiradores pela empresa Hempcare. A necessidade de aparelhos respiradores era premente e o município já havia feito inúmeras tentativas frustradas de aquisição, de modo que a doação foi aceita e o processo devidamente formalizado seguindo a legislação vigente e obedecendo as normas de transparência dos atos administrativos. Ocorre que, ao término do prazo para entrega dos equipamentos, surgiu na imprensa a celeuma envolvendo a empresa doadora Hempcare e empresa fabricante. Em vista disso, a administração do município decidiu por rescindir o contrato de doação, comunicando o ocorrido ao Ministério Público e aos demais órgãos de controle externo, de maneira que a doação nunca se concretizou. Por fim, registra que não tem conhecimento sobre inquérito policial que tramita no STJ para apurar a empresa Hempcare, não tendo sido até hoje comunicado ou intimado sobre a sua existência e conteúdo, de modo que não pode se manifestar sobre as investigações”.
Publicado em VEJA de 4 de maio de 2022, edição nº 2787