Por trás dos holofotes da CPI, Lula e Bolsonaro antecipam duelo de 2022
Enquanto a comissão do Senado atrai a maior atenção da história do país nos últimos tempos, a principal luta ocorre fora das câmeras de TV
“O presidente Jair Bolsonaro continua fazendo as mesmas coisas todos os dias. É difícil não responsabilizá-lo”
Renan Calheiros, ao responder se pretende incluir o capitão em seu relatório final da CPI da Covid
Peleja política que está atraindo a maior atenção da história do país nos últimos tempos, a CPI da Covid serve de palco aos senadores que brigam pela superaudiência, mas a principal luta ocorre fora das câmeras de TV. O processo vem sendo tratado pelos dois principais favoritos da eleição do ano que vem como uma batalha decisiva para a campanha de 2022. De maneiras distintas, Jair Bolsonaro e Luiz Inácio Lula da Silva têm trabalhado nos bastidores para orientar suas tropas no sentido de transformar os holofotes da comissão em luzes que os ajudem na corrida à Presidência da República.
Exemplo de manobras da pesada que ocorrem por fora da arena principal da CPI foi uma agenda importante durante a última passagem de Lula por Brasília, três semanas atrás, quando o petista se reuniu com boa parte da bancada do partido do Senado. Na ocasião, ele frisou a importância de se chegar ao fim da investigação parlamentar com as vísceras do governo expostas em praça pública e com a imagem de Bolsonaro o mais vinculada possível ao até agora meio milhão de mortos em decorrência da pandemia, em que o capitão e seus auxiliares são acusados de negligência. Mais recentemente, Lula repetiu o discurso em conversas virtuais com integrantes da CPI. Ele trata a comissão como uma joia da coroa para sua eleição e faz questão de lembrar aos aliados que os recordes de audiência das sessões refletem fielmente o apelo do assunto junto à população.
Em paralelo às reuniões do líder e alinhado à pregação de Lula, o PT vem empenhando esforços e recursos para extrair o máximo de lucro político da CPI. Montou no seu canal do YouTube a TV PT, que estreou justamente no início dos trabalhos da comissão, e de lá para cá tem se dedicado exclusivamente a “cobrir” — com um óbvio viés — as reuniões do colegiado. Nessa toada, por exemplo, Humberto Costa (PE), o mais atuante nome da legenda na CPI, passou a chegar ao Senado cada vez mais cedo para ser um dos primeiros inscritos a falar durante as sessões, logo após o relator. Renan Calheiros (MDB-AL), aliás, foi procurado pelos colegas da comissão incomodados com o tempo que ele usa para apresentar suas perguntas. Com Eduardo Pazuello foram quatro horas. Não é para menos: todos, dos dois lados, querem seus minutos (às vezes, muitos) de fama.
Embora demonstre até agora menos organização que os petistas, a tropa bolsonarista não deixa de bater forte nos bastidores, e não apenas de forma reativa para tirar o governo das cordas. Para essa turma, o ibope da CPI é uma oportunidade de enviar sinais aos seguidores mais radicais e, claro, uma chance também de fustigar adversários. Flávio Bolsonaro buscou os seus no melhor estilo da família: por meio de histrionismo, ofensas e pouco conteúdo. Durante o interrogatório do ex-secretário de Comunicação do governo Fabio Wajngarten, chamou Renan Calheiros de vagabundo ao ver o relator pedir ao presidente do colegiado, Omar Aziz (AM), a prisão de Wajngarten, sob acusação de ter mentido em seu depoimento — o que não foi aceito. Com o ato teatral, além de sinalizar apoio ao depoente, o Zero Um estava jogando para a sua bolha ideológica nas redes sociais, de acordo com os próprios governistas que integram a CPI. A participação de Flávio, inclusive, nem sequer foi combinada com o núcleo político do governo responsável por tocar os trabalhos da comissão. “Eu mesmo sugeri a ele não ir”, conta o líder do governo no Congresso, o senador Eduardo Gomes (MDB-TO).
Diferentemente de Lula, Jair Bolsonaro não tomou espaço na linha de frente do seu time que trata da CPI. Pelo contrário, nas reuniões a que vai, costuma ouvir mais do que falar. Seus escolhidos para a tarefa são o ministro da Secretaria-Geral da Planalto, Onyx Lorenzoni, coordenador do grupo, o almirante Flávio Rocha, titular da Secretaria de Assuntos Estratégicos, e três membros da base aliada que estão no colegiado: o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra Coelho (MDB-PE), Ciro Nogueira (PP-PI) e Marcos Rogério (DEM-RO), nome que mais tem impressionando o chefe. Longe de Brasília, um homem de confiança de Bolsonaro também vem trocando impressões sobre a CPI tanto com o capitão quanto com integrantes da comissão, como Eduardo Girão e Marcos Rogério. Trata-se do pastor Silas Malafaia. Nas mensagens que dispara, ele comenta e opina sobre o que acontece nas sessões. Recentemente, criticou a atuação de Bezerra Coelho. Segundo Malafaia, Bezerra tem se manifestado em favor do governo com menos frequência e assertividade do que deveria. Bolsonaro leu e não comentou a crítica do pastor. “A situação do Bezerra é delicada. No cafezinho, ele abraça e conversa amigavelmente com Renan. No fim, ambos são do MDB”, entrega um senador. Pernambuco, a terra de Bezerra, historicamente, é território lulista.
Mas se a trincheira dos bastidores se agita em alta temperatura com a batalha dos presidenciáveis, um outro importante nome da política nacional está surfando no sucesso de público da CPI como ninguém: Renan Calheiros. O protagonismo no colegiado é encarado como uma oportunidade única para tentar reconstruir sua imagem, carbonizada por diferentes escândalos de corrupção desde o governo Fernando Collor até a Lava-Jato, passando por sua renúncia à presidência do Senado em 2007. “Fui presidente do Senado quatro vezes e jamais tive uma exposição como essa: gigantesca e com pouquíssima contestação. Fizeram até um funk para mim”, comemora Renan, que trabalha para levar seu partido ao palanque de Lula. O ponto alto de sua atuação, porém, ele está guardando para o fim, quando vai apresentar seu relatório. Dos bolsonaristas mais apaixonados à militância do PSOL, não há quem aposte que Renan vai livrar Bolsonaro. O presidente deve figurar no parecer do relator como autor de dois crimes, sanitário e contra a vida. Renan não confirma nem desmente: “O presidente continua fazendo as mesmas coisas todo dia. É difícil não responsabilizá-lo”.
O entusiasmo do senador alagoano com a repercussão do trabalho encontra respaldo em números. Até agora, ele é um dos políticos que mais capitalizaram o sucesso da CPI, de acordo com um levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas (Dapp) da FGV sobre os impactos dos trabalhos da CPI no Twitter, feito a pedido de VEJA. Renan saiu de uma comunicação semianalógica para registrar mais de 5 000 interações com seu perfil na semana do dia 16 de maio. O líder do ranking, porém, é Marcos Rogério, que beirava a nulidade no Twitter, mas alcançou um crescimento de 3 311% nas últimas duas semanas, com média superior a 6 000 interações. Em termos de audiência, por sinal, a CPI da Covid-19 já é um sucesso absoluto para as redes de televisão, mas surpreendeu até quem já apostava no grande apelo do evento, como Lula, que, segundo petistas, se mostrou impressionando com o tamanho do alcance das transmissões. A GloboNews, canal de notícias por assinatura da Rede Globo, ampliou em 65% o ibope registrado no período em que são transmitidas as audiências da comissão — um acréscimo de 3,5 milhões de pessoas sintonizadas na emissora. A TV Senado obteve ganhos expressivos em seu canal no YouTube, ao contabilizar mais de 1 milhão de visualizações no vídeo da primeira ida do ex-ministro Eduardo Pazuello à CPI.
A alta visibilidade permitiu ao país acompanhar ao vivo os gols marcados pela CPI até agora, sobretudo nos depoimentos de Pazuello, Wajngarten e da secretária de Gestão do Trabalho e da Educação em Saúde do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, a “Capitã cloroquina”, prestado na terça 25. Essas oitivas expuseram graves erros cometidos pelo governo na condução da pandemia, impulsionados por um imperdoável negacionismo que retardou a compra de vacinas e pela atuação burocrática durante a crise de Manaus, onde brasileiros morreram afogados no seco, desamparados pela falta de oxigênio.
A megaexposição, entretanto, também provoca efeitos colaterais. As excelências, com muita frequência, se mostram mais concentradas em usar o tempo a que têm direito para fabricar frases de efeito do que para aprofundar as investigações. No sentido oposto, o senador e ex-delegado da Polícia Civil Alessandro Vieira (Cidadania-SE) se destaca, com pouco falatório para a plateia e perguntas objetivas. “Parte dos senadores gasta seus quinze minutos discursando. É legítimo, mas pouco efetivo. Nesse tempo curto, a melhor técnica é a de questionamentos rápidos e, quando possível, confrontar o depoente com coisas que ele já disse, expondo suas contradições. Todos poderiam ser mais bem inquiridos”, critica Vieira. Oportunidades para melhorar a performance não faltarão. A CPI agora mira seus canhões nos governadores, o que deve botar ainda mais fogo nos próximos capítulos da novela de sucesso retumbante. Enquanto isso, seus protagonistas seguem ávidos por visibilidade e sobrevida eleitoral, pois a política é uma guerra onde ninguém morre, ao contrário da dura vida real na pandemia, que segue empilhando cadáveres pelo Brasil.
Publicado em VEJA de 02 de junho de 2021, edição nº 2740