Por que Ciro Gomes pode se tornar peça decisiva na corrida eleitoral
Em terceiro lugar nas pesquisas, o candidato aparece até aqui como o único nome com potencial para romper o favoritismo de Lula e Bolsonaro
Cada eleição presidencial tem uma história diferente, com fatos e personagens específicos que se tornam determinantes para o resultado final. Em 2002, ano da primeira campanha vitoriosa de Lula, a maioria do eleitorado queria mudança, mas uma parcela significativa se mostrava preocupada com a política econômica que seria adotada pelo PT em caso de vitória do partido. Lula, então, lançou a estratégica Carta ao Povo Brasileiro, com a qual assumiu compromissos caros a empresários e banqueiros e consolidou seu favoritismo no páreo. Em 2018, Jair Bolsonaro já figurava em primeiro lugar nas pesquisas quando foi vítima de uma facada. O atentado quase lhe custou a vida, mas, em termos meramente eleitorais, serviu de impulso para que o então deputado de baixo clero conquistasse o Palácio do Planalto. Em 2022, o enredo ainda está sendo escrito. Até aqui, Lula e Bolsonaro despontam como favoritos, e há consenso de que a pauta principal do debate será a economia, mas uma série de variáveis torna o desfecho da disputa indefinido. Entre elas, destaca-se a candidatura do ex-ministro Ciro Gomes (PDT), que pode ser o fiel da balança na próxima corrida presidencial.
Em sua quarta tentativa de conquistar a Presidência, Ciro Gomes quer romper a polarização, consolidar-se como alternativa viável aos dois favoritos e chegar ao segundo turno. Hoje, esse cenário é considerado improvável, já que não alcança a casa dos dois dígitos nas pesquisas, nas quais aparece em terceiro lugar. Os votos prometidos a ele são insuficientes para o seu projeto pessoal, mas, se mudarem de mãos, podem decidir a eleição já no primeiro turno. É justamente esse o sonho de Lula e, ao mesmo tempo, o pesadelo de Bolsonaro: ver os eleitores de Ciro optarem pelo voto útil e o apoio ao petista, que, assim, poderia liquidar a fatura já no dia 2 de outubro. De acordo com a mais recente pesquisa Datafolha, Lula tem 47% das intenções de voto, enquanto Bolsonaro e Ciro marcam, respectivamente, 29% e 8%. Nessa simulação, o ex-presidente alcança 52% dos votos válidos, o que lhe daria a vitória no primeiro turno, ainda que por uma margem muito apertada. Caso os votos de Ciro migrem de forma majoritária para Lula, uma decisão em turno único a favor do petista passaria da condição de possível para a de bastante provável. “Muita gente faz voto útil. Se o Ciro sofrer derretimento na reta final, a possibilidade de uma eleição resolvida no primeiro turno aumenta muito”, afirma o cientista político Cláudio Couto, da Fundação Getulio Vargas.
Num primeiro momento, o desafio do ex-ministro é evitar o tal derretimento. Segundo o Datafolha, 66% de seus eleitores admitem mudar de voto. Do total, 36% dizem que apoiariam Lula e só 17% votariam em Bolsonaro. Por isso, a campanha do PT está jogando pesado para desidratar a candidatura de Ciro. Uma das estratégias adotadas é fechar alianças entre Lula e candidatos a governos estaduais do PDT que estão dispostos a abrir o palanque e pedir votos para o ex-presidente. É o caso do senador Weverton Rocha, que lidera as pesquisas para o governo do Maranhão. Rocha afirma que fará campanha para o colega de partido, mas deixa claro que apostará também na parceria com o petista: “Nos momentos difíceis de Lula, eu estive com ele, inclusive quando foi preso. Lula vindo, se me convidar, estarei junto. Tenho relação e proximidade com ele”. Outra estratégia do PT é, para enfraquecer ainda mais a campanha de Ciro, isolar os candidatos do PDT nos estados, inclusive rompendo alianças firmadas entre as duas siglas. É o que ocorreu recentemente no Ceará, base eleitoral do ex-ministro.
O plano inicial era que as duas legendas lançassem ao governo cearense um candidato único, filiado ao PDT, para enfrentar o nome de Bolsonaro na disputa, Capitão Wagner (União Brasil). Os petistas defendiam a escolha da governadora Izolda Cela, mas Ciro Gomes bateu o pé pelo ex-prefeito de Fortaleza Roberto Cláudio, contrariando até mesmo seu irmão Cid Gomes, que é senador. Dentro do PDT, Cláudio ganhou o direito de ser candidato ao bater Izolda por 55 votos a 29 votos. Em reação, o PT rompeu a aliança e lançou para o governo o deputado estadual Elmano Freitas, avalizado por Lula. “Lamentavelmente, o PT vem se manifestando de uma forma extremamente hegemonista, como é a característica dele. Aqui no Ceará, rompeu uma aliança de dezesseis anos porque queria que a candidata do PDT fosse quem eles determinassem. Se o PT não calçar as sandálias da humildade, isso pode atrapalhar os encaminhamentos de aliança entre os partidos no segundo turno (da sucessão presidencial)”, diz o líder do PDT na Câmara, deputado André Figueiredo.
A campanha de Lula não parece preocupada com esse tipo de alerta. Em Santa Catarina, o PT também desfez uma aliança com o partido de Ciro, isolando o candidato pedetista local. A ordem é sufocar o oponente até tornar a sua postulação inviável, mesmo que a candidatura presidencial seja mantida formalmente. Os petistas têm dito que o voto do eleitor de Ciro migrará naturalmente para Lula conforme a polarização aumentar e se cristalizar a sensação de que apenas os dois líderes das pesquisas têm chances reais de vitória. Nesse contexto, alegam os petistas, haveria um movimento natural em defesa do voto útil em Lula entre os eleitores de esquerda e centro-esquerda — tudo para evitar a reeleição de Bolsonaro. Um exemplo frequentemente citado é a campanha de 2020 para a prefeitura de São Paulo, quando o eleitor de Jilmar Tatto (PT) migrou para Guilherme Boulos (PSOL), que tinha mais chances de ir ao segundo turno contra Bruno Covas (PSDB). Outros casos lembrados são as manifestações recentes das cantoras Vanessa da Mata e Anitta, que declararam voto em Lula. “Eu ia votar no Ciro, mas vou votar no povo. O povo está pedindo Lula, voto no Lula”, disse Vanessa num show em julho.
Não é novidade para Ciro Gomes ser alvo do assédio do PT. Em 2010, quando ele estava filiado ao PSB, foi obrigado a desistir da disputa presidencial por pressão de Lula e companhia, que apostaram as fichas em Dilma Rousseff. Abriu-se ali uma ferida que não cicatrizou com o tempo. O ex-ministro até participou da coordenação da campanha de Dilma no segundo turno e, em 2014, apoiou sua reeleição. Com tais préstimos, esperava uma retribuição no futuro. Em 2018, com a prisão e a inelegibilidade de Lula, considerava-se o candidato natural da esquerda ao Planalto. Mais uma vez, foi preterido. Lula lançou Fernando Haddad, que curiosamente havia defendido, antes de ser ungido, o apoio do PT a Ciro. Haddad chegou ao segundo turno contra Bolsonaro. Perto da votação, Ciro viajou a Paris e, desde então, é acusado de ter se omitido e contribuído para a vitória do ex-capitão. “Essa história de que eu não voltei para o Brasil para votar em 2018 é mentira. O que eu não fiz foi ir para palanque”, declarou recentemente.
As investidas petistas têm, de fato, atrapalhado a performance do ex-ministro. Ciro Gomes foi anunciado candidato a presidente pela legenda em 20 de julho, no primeiro dia de prazo para as convenções partidárias. Até agora, no entanto, não tem candidato a vice nem alianças fechadas com outros partidos. A VEJA, o presidente do PDT, Carlos Lupi, disse que estava conversando com o União Brasil, que lançou a senadora Soraya Thronicke ao Planalto, e com o PSD, “apesar de Gilberto Kassab preferir não ter candidato”. Há um esforço da cúpula partidária — que sempre teve relações amistosas com Lula — em manter a aparência de apoio incondicional a Ciro. Nos bastidores, porém, é explícito um certo mal-estar com a falta de diálogo. A questão é que nada disso afeta o posicionamento político dele. Aos interlocutores mais próximos, o ex-ministro jura que não desistirá da disputa. Sua meta inicial é tirar Bolsonaro do segundo turno, quando enfrentaria — e, conforme seu prognóstico, derrotaria — Lula. De acordo com o Datafolha, o ex-presidente bateria Ciro por 52% a 33% em eventual segundo turno.
Para alcançar a façanha de passar para a reta final da votação, o ex-ministro tem batido sem dó nos dois líderes das pesquisas (veja o quadro). “Bolsonaro tem imensa culpa em tudo que está acontecendo, mas ele não é apenas causa. Ele é também efeito. Ele é efeito de um modelo econômico e de uma escola corrupta de governar que encaminharam o país, com pouquíssimos altos e muitíssimos baixos, para uma tragédia anunciada. Em catorze anos, o lulismo pariu Bolsonaro”, afirmou durante o discurso de lançamento de sua candidatura. “Por seus erros, Lula parece ter saído da prisão para aprisionar o Brasil em uma camisa de força. Por sua má índole, Bolsonaro, que chegou ao poder pelo voto, quer usar o voto para destruir as eleições e a própria democracia”, acrescentou na ocasião. No comando desse tiroteio está um experiente estrategista. Para tentar ganhar popularidade e superar a casa dos dois dígitos, o PDT contratou para trabalhar com Ciro Gomes o marqueteiro João Santana, que fez campanhas vitoriosas de Lula e Dilma à Presidência antes de ser preso pela Operação Lava-Jato. “A inteligência da campanha é feita por ele, que é o grande coordenador da criatividade da marca, com um programa de governo simplificado e linguagem popular”, diz Carlos Lupi, sem revelar quanto será investido pelo partido na corrida presidencial.
Foi de João Santana a ideia de transmitir vídeos estrelados por Ciro Gomes, nas noites de terça-feira, nos quais o candidato interage com influenciadores digitais e representantes da sociedade civil. O formato e o conteúdo são voltados para atingir o público jovem, faixa do eleitorado que seria mais propensa a optar por candidatos de esquerda e na qual o ex-ministro teria melhor desempenho nas pesquisas. Os vídeos contam com a participação de Giselle Bezerra, esposa de Ciro, que cumpre o papel simbólico de acenar às mulheres em nome da campanha do marido. Não será fácil. De temperamento mercurial e conhecido por atirar no próprio pé com suas falas iracundas, Ciro perdeu competitividade na eleição presidencial de 2002, quando, ao ser perguntado sobre qual era a importância na campanha de sua mulher à época, a atriz Patricia Pillar, respondeu: “Dormir comigo”. Não são raros os casos em que agride verbalmente eleitores ou reage a provocações. O ex-ministro não faz política construindo pontes. Pelo contrário, muitas vezes deixa-se levar pelo fígado. Em sua carreira, transitou por diferentes partidos, da esquerda à direita, tendo como prioridade as suas conveniências e convicções pessoais. Até por isso, suas candidaturas presidenciais sempre sofreram com a falta de alianças.
Em 2022, o isolamento do agora pedetista não é fruto apenas do poder de atração que os favoritos Lula e Bolsonaro exercem sobre o mundo político. Com bem menos intenções de voto do que Ciro, a senadora Simone Tebet (MDB) conseguiu fechar uma aliança com o Cidadania e o PSDB, que indicou a também senadora Mara Gabrilli como vice na chapa. Em condições normais, Ciro comporia com o PT no segundo turno. Suas declarações recentes, no entanto, tornam praticamente inviável uma aproximação entre os antigos aliados. Diante dos ataques desferidos pelo pedetista, o PT não conta mais com a possibilidade de um apoio formal de Ciro, sequer num eventual segundo turno. Para Lula, o importante agora é conquistar os votos hoje prometidos ao ex-ministro, que parecem pouco isoladamente, mas, se incluídos no balaio do ex-presidente, podem lhe garantir a vitória sobre Bolsonaro no primeiro turno. “A gente não quer convencer o eleitor de outro candidato que nosso candidato é melhor do que o dele. Queremos mostrar que o presidente Lula é o único que pode derrotar Bolsonaro sem a necessidade de dois turnos”, reforça o deputado petista Alexandre Padilha. São muitas as hipóteses e os cenários possíveis neste início de campanha. Em sua quarta tentativa de chegar ao Planalto, o irascível Ciro Gomes corre sério risco de fracassar novamente. Mas é recomendável que se preste muita atenção nele. O resultado desta eleição — direta ou indiretamente — vai depender bastante de seu desempenho e de seu eleitorado.
Publicado em VEJA de 10 de agosto de 2022, edição nº 2801