Pesquisa inédita mostra como o voto das mulheres pode definir a eleição
Economia e pandemia estão no topo das preocupações das brasileiras — e cerca de 40% admite que, daqui até outubro, sua escolha nas urnas pode mudar
Ao longo da história das eleições, o voto das mulheres sempre foi considerado (de forma machista, claro) um artigo de segunda categoria. No Brasil, só foi autorizado há exatos noventa anos e, sendo política coisa de homem, o costume durante muito tempo era seguir a escolha dos pais e dos maridos. O ponto de inflexão dessa mesmice eleitoral ocorreu em 2018 como consequência da polarização extremada da campanha: o Brasil chegou ao segundo turno radicalmente dividido, com cada eleitor convicto até a alma da justeza de sua opção, mulheres inclusive, e a apuração mostrou, pela primeira vez, uma discrepância de gêneros — enquanto eles apoiaram maciçamente Jair Bolsonaro, o placar delas permaneceu tecnicamente empatado entre os dois candidatos.
Uma pesquisa inédita encomendada por VEJA mostra que, na votação que se aproxima, a face feminina do voto ganha traços muito bem definidos, com a economia e a pandemia no topo das preocupações. E, embora a rejeição a Bolsonaro continue nas alturas e a vantagem de Lula no segmento seja de 50% a 22%, uma parcela significativa das eleitoras, cerca de 40%, admite que, daqui até outubro, seu voto pode mudar. Conquistá-las e manter sua fidelidade são pontos de honra para todos os candidatos. E não é exagero dizer que, pela sua unidade, elas podem, sim, definir o próximo presidente da República.
O levantamento da Genial/Quaest ajuda a esclarecer as motivações e aspirações desse contingente que compõe 53% do eleitorado e que, cada vez mais, se expressa com voz própria. “A escolha delas se tornou bem mais relevante. O lado que tomarem vai ser determinante para o vencedor nas urnas”, avalia o cientista político Felipe Nunes, CEO da Quaest. A pesquisa, feita nos primeiros dias de junho nos 26 estados e no Distrito Federal, mostra que nunca se viu, tão perto da eleição, tamanha dissonância entre homens e mulheres. A vantagem de Lula é de 9 pontos porcentuais entre eles e de 28 pontos entre elas. Quando indagadas sobre qual dos candidatos tem perfil para dar mais atenção às suas demandas específicas, as eleitoras continuam a conceder confortável liderança ao petista, mas esse é o único recorte em que a solitária representante feminina de um grande partido, a senadora Simone Tebet (MDB) — catapultada para o ringue eleitoral em grande parte por ser mulher —, desponta com porcentual de dois dígitos (11%). “Bolsonaro ganha rejeição na medida em que se apresenta e governa de forma masculinizada, incita a violência e desconsidera as aspirações delas”, observa Malu Gatto, professora da University College de Londres e especialista em participação feminina na política.
A importância das eleitoras é sabida e a corte às mulheres tem marcado as pré-campanhas em manifestações de diversos formatos. No caso de Bolsonaro, cujo governo é considerado negativo por 51% delas e positivo por apenas 19%, caciques do Centrão tentam de toda forma emplacar como vice a ex-ministra da Agricultura Tereza Cristina (PP-MS), que veem como muito mais capaz de derreter rejeições do que o favorito do Planalto, o ex-ministro da Defesa e general Braga Netto. O peso das eleitoras femininas também impulsionou um esforço para tirar dos bastidores a primeira-dama Michelle Bolsonaro — que, no entanto, reluta em gravar inserções na propaganda do PL para a TV. Sem Michelle, uma peça veiculada neste mês teve como estrela feminina a ex-ministra da Secretaria de Governo Flávia Arruda. Em outro vídeo, o presidente aparece sorridente e atencioso, cercado de apoiadoras. O anseio por esses votos é, ao mesmo tempo, imprescindível e, até agora, improdutivo — segundo o levantamento da Genial/Quaest, as que declaram intenção de voto em Bolsonaro são as mais propensas a pular do barco. “Ele só terá chance de reeleição se conseguir persuadir as mulheres a apoiá-lo”, garante Nunes.
O grau de volatilidade do voto feminino, bem mais alto do que o masculino, é uma dor de cabeça misturada com esperança para as equipes de campanha de todos os presidenciáveis. Na leitura dos analistas, Lula se sai melhor entre esse público por três motivos: personaliza um contraponto ao presidente, tem um discurso menos hostil do que o dele e se diz solidário com suas preocupações na questão econômica, a mais crucial para as mulheres. A campanha petista também tem dado visibilidade para a mulher de Lula, a socióloga Rosângela da Silva, a Janja, cada vez mais atuante. Na mesma toada, o terceiro colocado nas pesquisas, Ciro Gomes (PDT), passou a gravar vídeos ao lado da mulher, Giselle Bezerra, e a levá-la a compromissos públicos. Última a entrar no jogo, Simone Tebet confia no espírito corporativista das companheiras. “Vivencio os problemas das mulheres, suas dores. Conheço a desigualdade no mercado de trabalho, a dificuldade de conseguir uma creche e poder trabalhar, a violência doméstica”, elenca a senadora.
Tudo o que mexe com a vida doméstica influi decisivamente, segundo especialistas, na escolha de candidatos pelas mulheres. A disparada dos preços e a perda do poder de compra assolam, sim, todos os brasileiros, mas são elas que sentem os impactos da crise de forma mais concreta. “Os problemas na economia recaem normalmente sobre as mulheres. Elas estão mais preocupadas com a desestruturação da família, pensam no filho desempregado, no marido, nas contas”, aponta a cientista política Nara Pavão, professora da Universidade Federal de Pernambuco. Moradora da periferia de João Pessoa, na Paraíba, a diarista Maria da Conceição de Souza, 42 anos, ilustra esse Brasil que sente na pele a incerteza econômica. Com renda mensal de meio salário mínimo e o companheiro desempregado, ela recebe os 400 reais do Auxílio Brasil, mas sua para arcar com os custos galopantes. “Subiu tudo: gás, óleo, feijão. Só comemos carne uma ou duas vezes por semana”, lamenta Conceição, que não vê noticiário, não tem computador e sequer sabe o nome dos principais postulantes à Presidência. Apresentada a eles, fica indecisa. “Sinceramente, vendo esses nomes aí, talvez vote no Lula. Ele fez muito por nós”, arrisca. Se o fizer, estará se encaixando na estatística de um dos cruzamentos inéditos da pesquisa da Quaest: a maior goleada do petista em Bolsonaro está justamente no time das mulheres nordestinas, 70% das quais dizem que vão votar nele (11% no atual presidente).
Se na eleição presidencial anterior a Lava-Jato, o antipetismo e a rejeição ao sistema político em vigor dominaram os debates, desta vez o nó da questão está no que vem sendo chamado de “feminização da fome” — em pesquisa recente, quase metade das entrevistadas reclamou de falta de dinheiro para comprar comida (entre os homens, apenas 26%). Outro ponto que as aflige com força é a pandemia. Na população feminina, segundo o levantamento da Quaest, 52% ainda se consideram “muito preocupadas” com a Covid-19 e 65% acham que Bolsonaro errou mais do que acertou na crise sanitária.
Essa constatação confirma pesquisas internacionais que mostram que, de um modo geral, as mulheres se importam mais com os estragos do novo coronavírus do que os homens. “A pandemia tem impacto relevante no eleitorado feminino. No Brasil, Bolsonaro foi um negacionista, não se vacinou e, recentemente, se pôs contra a imunização das crianças. Isso para as mães é muito forte”, observa o cientista político Jairo Nicolau, um dos maiores especialistas em sistemas eleitorais. Reflexo da conscientização do voto feminino e da sua flexibilidade para mudar, a executiva paulista Rosangela Lyra, 57 anos, embalou na causa contra a corrupção e fez campanha anti-PT em 2018, mas agora mudou de lado. “As mulheres estão menos submissas e mais instruídas diante do que está acontecendo. Perdi o pai dos meus filhos por ele acreditar nas soluções do Jair. Tomou tanta ivermectina que o coração não aguentou”, relata Rosangela.
Embora o contexto atual empurre as mulheres para a direção de Lula, a pesquisa da Quaest revela a permanência entre elas de traços nítidos do Brasil mais conservador — o que, de novo, evidencia que, na política, suas escolhas são cada vez mais refletidas e individuais. Entre as entrevistadas, 51% disseram que podem mudar de voto se seu candidato defender o direito ao aborto, uma causa que ganha adeptos mundo afora, mas no Brasil ainda é um grande tabu. A recente declaração de Lula de que se trata de “uma questão de saúde pública” e, portanto, deve ser acessível a todas as mulheres (depois amenizou e se declarou pessoalmente contra) repercutiu como um turbilhão nas redes sociais bolsonaristas e deve atiçar o debate eleitoral. “Bolsonaro vai ficar o tempo todo buscando se desviar dos problemas graves que afligem o povo, por não ter nada de concreto a apresentar”, critica — previsivelmente — Wellington Dias, que faz parte da coordenação da campanha de Lula. O argumento não comove Aneria Pereira, 79 anos, que mora em Goiânia, no Centro-Oeste, e frequenta uma igreja evangélica. “Jamais votaria em quem apoiasse o aborto. Depois que Deus deu o espírito, ninguém deve tirar a vida”, afirma ela.
A entrada das mulheres no cenário eleitoral brasileiro foi tardia. Elas só puderam votar a partir de 1932, 108 anos depois dos homens, assim mesmo por opção — o sufrágio feminino tornou-se compulsório em 1965. Agora, no entanto, estão recuperando o atraso, deixando claro que sem seu voto ninguém ganha, e esse voto não tem nada a ver com o do pai ou do marido. No Sul do país, fortaleza bolsonarista, as pesquisas apontam empate técnico do presidente com Lula. Mas, separando-se o segmento feminino, o placar fica 25% para Bolsonaro e 42% para o petista. “A variável mulher está se sobrepondo a outros recortes, como religião e região do país”, destaca Nunes. Apesar da renovada consciência política, as mulheres ocupam pouco espaço nos cargos eletivos — na eleição passada, 85% das vagas na Câmara dos Deputados foram para homens. Mas o crescente engajamento está promovendo uma mudança de atitude. Antenada e militante, a estudante de geografia e cantora Mariana Torquato, 19 anos, moradora do Rio de Janeiro, estreou nas urnas em 2018 e ainda fez questão de ir às ruas clamar contra o retrocesso que via em Bolsonaro. “A gente pode mudar o Brasil. Chamo a atenção nas redes para as fake news, o machismo, o descaso com o meio ambiente e com as minorias”, diz a jovem de esquerda. Palavra de mulher.
Publicado em VEJA de 22 de junho de 2022, edição nº 2794