“Pego as coisas e vou embora”
Incomodado com os ataques da família Bolsonaro, o vice Hamilton Mourão já admitiu, em tom de desabafo, que pode renunciar ao cargo se o presidente pedir
Em público, o presidente Jair Bolsonaro e o vice Hamilton Mourão vivem um casamento sólido, visitado apenas por desavenças ocasionais e amenas, próprias das uniões estáveis e felizes. “Esse casamento é até 2022, no mínimo”, disse Bolsonaro em café da manhã com a imprensa na quinta-feira 25, no Palácio do Planalto. “Continuamos dormindo na mesma cama. Só tem briga para saber quem vai arrumar a cozinha”, divertiu-se Bolsonaro. “Ou cortar a grama”, emendou Mourão. Por trás das alegres metáforas matrimoniais, a realidade que se esconde nos bastidores mostra que, das crises políticas que o atual governo enfrentou até aqui, a mais grave é esta — as hostilidades, amenizadas em público mas incandescentes em privado, entre o presidente e o vice.
As divergências vieram à tona pelas mãos de Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, que postou um vídeo na conta do pai no YouTube no qual o guru Olavo de Carvalho desfia críticas impiedosas aos militares — “são incultos e presunçosos”. Seu alvo era claro: o general Hamilton Mourão, a quem o proselitista já chamou de “adolescente desqualificado”. O presidente, mais incomodado com as críticas ao golpe de 64 do que ao vice, pediu que o vídeo fosse retirado do ar. Mas, a essa altura, já estava aberta a temporada de ataques a Mourão. Na saraivada de tuítes que se seguiu ao episódio, o vice foi acusado de se opor às propostas do presidente, de se aliar a adversários, de se aproximar de empresários importantes, de bajular a mídia, de se apresentar como sensato e transigente — tudo isso, segundo Carlos, planejado para que Mourão se viabilize como alternativa de poder.
A questão central é uma só: Bolsonaro avaliza as críticas públicas que o filho tem feito ao vice, acusando-o de conspirar contra o governo? A resposta é “sim”. Ele não concorda com tudo, mas acha que o filho está mirando no alvo certo. “Algumas críticas são justas”, admitiu Bolsonaro na quinta-feira. Quais? “Não vou entrar em detalhes”, cortou. Desde a postagem do vídeo, o general Mourão começou a cristalizar sua desconfiança de que os ataques de Carlos tinham o aval do presidente. No domingo, o general, cuja aparência sisuda esconde uma personalidade brincalhona, estava calado, triste e até teve picos de pressão. Cercado por familiares, mostrou-se contrariado e disse que, se aquilo continuasse, não descartava a saída extrema de renunciar. “Se ele (Bolsonaro) não me quer, é só me dizer. Pego as coisas e vou embora”, desabafou. Resignado, explicou que é um soldado a serviço da nação. No governo, tudo o que faz, diz ele, é tentar ajudar o presidente, e não o contrário. “O presidente nunca me disse para parar, para não falar com essa ou aquela pessoa. Então, entendo que não estou fazendo nada de errado. Mas se ele quiser que eu pare…”, disse.
Bolsonaro, por sua vez, está convencido do oposto, e já emitiu vários sinais de sua insatisfação com o vice. Na terça-feira 23, durante a reunião do Conselho de Governo, no Palácio do Planalto, alguém elogiou o presidente e declarou que ele vencera sozinho uma eleição difícil, sem a ajuda dos políticos. “Não, teve o Mourão comigo”, Bolsonaro ironizou. Semanas atrás, irritado com algo que não deixou muito claro aos interlocutores, o presidente voltou a censurar o vice. “O negócio é o seguinte: o Mourão é general lá no Exército. Aqui quem manda sou eu. Eu sou o presidente”, afirmou, elevando o tom de voz. Bolsonaro tampouco freou os filhos. Ao contrário, Carlos, depois do vídeo de Olavo de Carvalho, intensificou os ataques (veja o quadro ao lado). O deputado Eduardo Bolsonaro também entrou na roda, declarando que o general realmente precisa ser enquadrado: “O Mourão não foi eleito para ficar dando declarações contrárias às do presidente ou para agradar a uma parte da opinião pública. A função do vice é substituir o presidente em uma eventual ausência dele. Tem de ser um soldado na porta do quartel. Nada mais”. Para o Zero Três, o vice enseja a desconfiança de que ele pode almejar um cargo mais alto da República. “No começo eu ouvia esse papo e achava besteira. Agora, já não sei mais”, afirma.
O gabinete da Vice-Presidência funciona no anexo 2 do Palácio do Planalto, a apenas alguns metros de onde despacha o presidente. É uma sala relativamente modesta, se comparada à de Bolsonaro. É lá que Mourão recebe a imprensa — a quem o presidente acusa de querer boicotá-lo — e mantém as portas abertas aos parlamentares críticos do governo. No início do mês, Mourão recebeu o líder da oposição no Senado, Randolfe Rodrigues (Rede-AP). A assessoria do parlamentar acionou o gabinete do vice e pediu o encontro. Após algumas horas, a audiência foi confirmada diretamente por Mourão, que, atencioso, ligou para o senador e marcou a reunião para dois dias depois. “Nós conversamos com quem tem sensatez para conversar”, diz o senador, um opositor feroz ao governo, ao expor o motivo de ter procurado o vice, e não o presidente, para discutir uma agenda de melhorias de infraestrutura em seu estado. Ao fim do encontro, Mourão passou seu contato pessoal ao parlamentar e colocou-se à disposição.
Na segunda-feira, o vice recebeu a deputada Perpétua Almeida, do PCdoB. Ela foi pedir a Mourão apoio para aumentar a proteção nas fronteiras do Acre e para ajudar a destravar a proposta de criação de um escritório do Banco do Brics (grupo que reúne Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) no Brasil. Na reunião, encontrou um vice-presidente receptivo, que lhe confidenciou ter uma prima, Arminda Mourão, ex-filiada ao PCdoB. Entre risos, Mourão contou que a prima tentou convencê-lo a ingressar no partido. “O vice-presidente entende a liturgia do cargo que está ocupando. É um democrata”, disse Perpétua a VEJA.
Até aliados do governo, que têm esbarrado em dificuldades para falar com ministros e com o próprio presidente, batem à porta de Mourão. O deputado de primeiro mandato Márcio Labre (PSL-RJ) procurou o vice dizendo ser seu fã. Em uma conversa de quarenta minutos, eles falaram de política a pesca, e chegaram a tratar sobre as declarações do vice-presidente. Ao parlamentar, Mourão explicou que, quando entrou no Exército, foi instruído a ser sincero e a sempre falar o que pensava. “Com o Bolsonaro é a mesma coisa. Enquanto não recebo uma diretriz, mantenho pública a minha opinião pessoal”, ponderou. É essa desenvoltura que tem catalisado as desconfianças do presidente e de alguns aliados sobre as verdadeiras intenções do vice.
Em um governo tão sectário na política e na ideologia, o amplo leque de ações do vice soa como provocação — ou, o que é pior, como conspiração. Para piorar, os petardos que mantêm aceso o conflito costumam ser disparados por assessores que, às vezes mais realistas que o rei, apostam no confronto. Tanto que foi Carlos, e não Bolsonaro, quem publicou o vídeo na conta do pai. E foi o coronel Itamar, que cuida da rede social do vice, quem curtiu um comentário da jornalista Rachel Sheherazade, do SBT, que enfureceu Carlos. São os peões da intriga palaciana.
Há duas semanas, o deputado Marco Feliciano (PODE-SP), vice-líder do governo, protocolou um inusitado pedido de impeachment de Mourão. Mas, curiosamente, ele mesmo admite que não quer a cassação do vice. “Foi um tiro de alerta. Eu não mirei o coração do Mourão. Eu mirei os ouvidos — os dele e os de todos os que estão com ele. Agora, aqueles que frequentam o gabinete podem ser vistos como conspiradores”, afirmou o parlamentar a VEJA. Antes de apresentar o pedido, Feliciano foi ao Palácio do Planalto para consultar o presidente sobre sua ideia. Acompanhando a audiência estava o ministro-chefe do Gabinete de Segurança Institucional, general Augusto Heleno, amigo de Mourão. O parlamentar e o presidente conversaram a respeito da reforma da Previdência e, depois de alguns minutos, Feliciano pediu para ficar a sós com Bolsonaro. O general saiu da sala, e Feliciano então falou da proposta de impeachment. Explicou que questionaria o decoro de Mourão. “Nos 100 dias de governo foram 100 dias de vice alfinetando o presidente”, disse. O presidente não fez nenhum comentário. Feliciano tomou o silêncio como sinal verde. O pedido de impeachment já foi devidamente arquivado pelo presidente da Câmara, deputado Rodrigo Maia.
No café da manhã de quinta-feira, Bolsonaro e Mourão sentaram-se lado a lado, em cena de harmonia. Fizeram questão de dizer que Carlos tem o direito de expressar sua opinião. Mourão chegou a comentar que o fato de Carlos ser filho do presidente não o obriga a ficar “de bico calado”. Mas é uma ingenuidade a noção de que a crítica do filho do presidente seja comparável à de qualquer político. Ainda mais quando o referido filho teve papel fundamental na campanha e exerce influência indiscutível sobre o presidente. “Ele é, de longe, o mais influente dos filhos”, confirma um ministro da ala dos auxiliares mais poderosos do governo.
Na história brasileira, não são raros os conflitos entre titular e vice. O marechal Deodoro da Fonseca, o primeiro presidente da República, desconfiava, com razão, de Floriano Peixoto, que assumiria seu lugar nove meses depois da posse. Café Filho conspirava contra Getúlio Vargas. João Goulart não dava trégua a Jânio Quadros. Na redemocratização, Itamar Franco voltou-se contra Fernando Collor. Dilma Rousseff acreditava que Michel Temer era o vice mais discreto e servil com que um presidente poderia contar. Deu no que deu. Na crise de agora, seria útil, para a paz política, que as hostilidades ficassem dentro de casa — como acontece nos casamentos de sucesso. Diz o cientista político e colunista de VEJA Sérgio Praça: “Basta Bolsonaro manter-se vivo que Mourão não terá importância. Ele tem de seguir a sua agenda e evitar essas crises à toa”.
Declarações de guerra
Com o aval do presidente, Carlos Bolsonaro acusou pelo Twitter o vice Hamilton Mourão de conspiração e desencadeou mais uma crise no governo
TEORIA DA CONSPIRAÇÃO
A intriga entre Carlos e Mourão começa em novembro de 2018, quando o filho insinua que a morte de Bolsonaro interessaria ao vice
O ESTOPIM
No domingo 21, Carlos posta um vídeo de Olavo de Carvalho em que este ataca os militares. O escritor chama os generais de “incultos e presunçosos”
RESPOSTA
No dia seguinte, Mourão ironiza as críticas e diz que Olavo deveria focar o que entende — astrologia. Na sequência, Carlos mostra que o general curtiu um post de uma jornalista que classificou o presidente de “vinagre” e o vice de “vinho”
NOVO ATAQUE
Na terça-feira 23, Carlos posta o convite de uma palestra nos Estados Unidos para a qual o vice foi convidado e insinua que Mourão só foi chamado com a missão de falar mal do governo
“PÉROLAS”
No mesmo dia, Carlos posta vídeo em que o vice fala da crise na Venezuela. O general disse que a população do país tinha de estar desarmada para evitar uma guerra civil — “uma pérola!”, ironiza Carlos
O ATENTADO
À noite, Carlos lembra que o general classificou de “vitimização” a exploração do atentado sofrido pelo presidente na campanha eleitoral
BASTIDORES
Na sequência, Carlos compartilha um vídeo que fala de uma suposta articulação política do PRTB, partido de Mourão, para ter independência do governo Bolsonaro
DE CASO COM O INIMIGO
Poucas horas depois, Carlos, o incansável, compartilha entrevista de Mourão em que o vice diz que não iria comentar a decisão da Justiça de reduzir a pena do ex-presidente Lula
DEFENDENDO O INIMIGO
Logo em seguida, Carlos expõe um comentário de Mourão criticando o processo de “despetização” promovido pelo ministro Onyx Lorenzoni no governo
OFERECENDO PROTEÇÃO
Na quarta-feira 24, Carlos compartilha uma entrevista em que Mourão oferece proteção ao ex-deputado Jean Wyllys, do PSOL, que fugiu do Brasil
ESCLARECIMENTO
No mesmo dia, criticado pela ofensiva contra Mourão, Carlos escreve que não está atacando o general, mas apenas apresentando fatos
Provocações explícitas
Em declarações públicas, Hamilton Mourão tem assumido posições antagônicas às do presidente
Relação com a Imprensa
“Quero agradecer a atenção e cumprimentar pela dedicação, entusiasmo e espírito profissional a todos os jornalistas que me recebem na minha chegada e de mim se despedem quando deixo o anexo da Vice-Presidência. Boas matérias a todos!”
Em janeiro, Bolsonaro cancelou uma entrevista coletiva em Davos após receber críticas da imprensa. Mourão publicou um post elogiando o trabalho dos jornalistas
Imigrantes ilegais
“Se está ilegal, a pessoa não está respeitando a lei, mas está aqui buscando obter alguma legalização, e isso compete ao governo americano. O governo brasileiro não tem de se meter nisso.”
Em sua visita aos Estados Unidos, em abril, depois que o presidente disse, também em solo americano, que “a grande maioria dos imigrantes em potencial não tem boas intenções”
Inimigos externos
“Não podemos nos descuidar do relacionamento com a China (…) Uma briga com a China não é uma boa briga (…) Aquilo (a declaração do presidente de que a China está querendo comprar o Brasil) é mais uma retórica de campanha, né?”
A declaração do vice-presidente, em novembro de 2018, confrontou-se com o discurso do presidente que critica as investidas feitas pela China na economia brasileira
Embaixada em Jerusalém
“É óbvio que a questão (da transferência da embaixada brasileira em Israel para Jerusalém) terá de ser bem pensada. É uma decisão que não pode ser tomada de afogadilho, de orelhada. Temos um relacionamento comercial importante com o mundo árabe (…) Há também uma população de origem árabe muito grande em nosso país, concentrada nas nossas fronteiras.”
Contrapondo-se mais uma vez à pregação do presidente, Mourão defendeu, em novembro de 2018, mais cautela na relação com Israel e mais harmonia com os países árabes
Articulação política
“A partir do momento que esses partidos estejam concordando com o que o governo pretende fazer, é óbvio que eles vão ter algum tipo de participação, seja em cargos nos estados, algum ministério ou algo do gênero.”
Ao contrário do que Bolsonaro repete desde a campanha, o vice disse, em abril, que o governo poderia oferecer cargos a partidos para formar uma base aliada no Congresso
Publicado em VEJA de 1º de maio de 2019, edição nº 2632
Damares Alves
O episódio 3 da série de podcasts Funcionário da Semana traz a história da ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) – da sua atuação como assessora parlamentar à coleção de frases polêmicas no governo Bolsonaro que fizeram dela um trending topic constante nas redes sociais.
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