Pauta-bomba acesa por Pacheco no Senado não terá vida fácil — e com razão
Presidente da Casa deixa o bom senso de lado ao bancar uma emenda constitucional que beneficia a casta do funcionalismo, em prejuízo do país
Embora tenha nascido em Rondônia, Rodrigo Pacheco ascendeu na política com o tradicional “estilo mineiro”: discreto, protocolar, conciliador e avesso a radicalismos. Dessa forma, conquistou o apoio de setores econômicos e políticos que lhe garantiram dois mandatos como presidente do Senado. Por essas mesmas características, chegou a ser cotado como uma alternativa à Presidência da República na eleição de 2022, já que demonstrava ser um político guiado pelo bom senso e pela moderação em meio ao ambiente eleitoral contaminado pelo extremismo. Na liderança do Congresso, foi fundamental para garantir a defesa da democracia quando o país se viu ameaçado por uma tentativa mambembe, mas muito real, de golpe.
Nos últimos meses, entretanto, já em contagem regressiva para o fim de seu mandato, em fevereiro de 2025, Pacheco deu uma guinada. Primeiro, foi a controversa ideia de apresentar um projeto, aprovado na Casa, que criminaliza todo e qualquer porte de droga, o que bate de frente com o entendimento mais comum nas democracias modernas. Agora, decidiu ir na contramão do que precisa o país, ao bancar a PEC do Quinquênio, uma emenda constitucional que cria um privilégio injustificável para uma elite do funcionalismo (juízes e promotores à frente) e, mais do que isso, provoca um impacto bilionário em um orçamento que demanda corte de gastos.
A proposta, que avançou na Comissão de Constituição e Justiça com os votos até de senadores governistas, é totalmente indefensável. Ela prevê um reajuste de 5% a cada cinco anos a algumas categorias de servidores, o que permitiria a essa casta ganhar mensalmente mais de 44 000 reais, que é o teto constitucional. O texto original de Pacheco previa o benefício apenas para magistrados e integrantes do Ministério Público, mas o previsível efeito cascata começou ainda na CCJ, quando um substitutivo do relator, Eduardo Gomes (PL-TO), estendeu o mimo a advogados e defensores públicos, ministros e conselheiros de tribunais de contas, em nível nacional, estadual e municipal. O texto passou por quatro das cinco sessões deliberativas do plenário exigidas por lei e está prestes a ser votado.
A tramitação, no entanto, não terá vida fácil — e com razão. A preocupação geral é com o impacto financeiro da proposta. Segundo nota técnica da Consultoria de Orçamentos, Fiscalização e Controle do próprio Senado, como está, a PEC vai causar um rombo de mais de 80 bilhões de reais nos próximos três anos — 20 bilhões de reais só em 2024, o equivalente a quase três vezes o que o governo planeja gastar com o programa Pé de Meia, bolsa destinada a manter 2,5 milhões de estudantes no ensino médio. A nota também aponta três nulidades no texto: a ausência de previsão de onde sairão os recursos, o fato de significar uma imposição da União sobre encargos de outros entes (estados e municípios) e a possibilidade de os vencimentos ultrapassarem o teto constitucional. O documento aponta ainda que o texto deixa aberta a possibilidade de o benefício ser estendido “a qualquer cargo ou carreira” por decisão política. “Ninguém sabe exatamente qual é o efeito cascata que isso vai produzir, pela demanda de outras categorias”, alerta Jaques Wagner (PT-BA), líder do governo, que tenta barrar o avanço do projeto, da forma como está, no Senado.
A proposta bate de frente com as preocupações do país. O governo, liderado pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tenta aumentar a arrecadação e reduzir gastos e, em razão disso, trava batalhas duras no Congresso e no Judiciário para garantir o ajuste nas contas — as mais recentes estão relacionadas à proposta de desoneração da folha de pagamentos e a definição do teto de 15 bilhões de reais para o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse). O esforço de Haddad encontra dificuldades dentro do próprio governo, encabeçado por um presidente que acredita no poder do Estado de promover desenvolvimento desembolsando quantias cada vez maiores de dinheiro público, algo que já levou o país ao abismo.
Além disso, a ideia despropositada de Pacheco foca um segmento do funcionalismo público que historicamente é o mais privilegiado. Não são raros os casos como o de uma desembargadora do Tribunal de Justiça de Goiás que recebeu vencimentos acima de 100 000 reais durante o ano de 2023, como apontam dados levantados para VEJA pela ONG Transparência Brasil. O Atlas do Estado Brasileiro, desenvolvido pelo Ipea, aponta que o Judiciário é o poder da República com a maior média de remunerações desde a década de 1990. O relatório Justiça em Números, do Conselho Nacional de Justiça, aponta que o custo mensal médio de um magistrado em 2023 foi de 69 800 reais, enquanto a média dos servidores foi de 19 300 reais. O estado do Maranhão, por exemplo, gastou 12,5% de suas despesas em 2022 com o sistema de Justiça, a maior fatia em todos os estados — mais da metade foi para salários. Servidores têm reclamado que a concentração dos recursos para vencimentos dos juízes é tão grande que resta pouco dinheiro para o próprio funcionamento da comarca.
Oriundo da advocacia, Rodrigo Pacheco costuma usar uma retórica formal e recheada de termos jurídicos para defender os seus pontos de vista. No caso da PEC, ele entende que o quinquênio, um benefício extinto pelo CNJ em 2006, promoveria uma espécie de plano de carreira para o Judiciário — como se isso fosse necessário para essa elite. Para viabilizar a aprovação, ele propõe a retomada do texto inicial, que prevê a concessão do benefício apenas a magistrados e integrantes do MP. O custo anual, segundo sua assessoria, seria de 2,9 bilhões de reais por ano — a consultoria do Senado, no entanto, aponta 10 bilhões de reais. No debate, o presidente do Senado também sugere que a proposta seja aprovada “casada” com outra PEC, a que propõe o fim dos “supersalários” no funcionalismo público e que está parada na CCJ, onde aguarda a indicação de um relator. “É a fórmula justa e razoável de conciliar o interesse público e orçamentário com a indispensável valorização desses profissionais”, defende. “Essa combinação legislativa, dentro dos limites orçamentários do próprio Judiciário, representará no final das contas o uso racional e com critério de recursos para valorização igual de seus membros.”
O discurso empolado tem até uma certa graça, exceto por um “detalhe”: de onde sairá dinheiro suficiente para isso? Interlocutores no Congresso veem nas recentes movimentações de Pacheco um objetivo claro. Com a famigerada PEC do Quinquênio, ele tenta arregimentar apoio no meio jurídico para o projeto de disputar o governo de Minas Gerais em 2026. É legítima a pretensão dele, mas isso não pode comprometer as contas públicas do país, sobretudo no momento em que o presidente Lula e o PT, na direção contrária à de Haddad, tentam priorizar seus projetos políticos às custas da responsabilidade fiscal. Diante disso, o que seria de esperar de uma liderança do Congresso é um contrapeso à pressão pela gastança irresponsável. Pacheco, no entanto, e infelizmente, deixou o bom senso de lado.
Publicado em VEJA de 3 de maio de 2024, edição nº 2891