Partidos de centro tentam recuperar eleitores que migraram para Bolsonaro
Com a popularidade presidencial em baixa, siglas avaliam que há alguma chance de reaver os votos perdidos em 2018. Uma tarefa nada fácil
Desde a redemocratização do país, as eleições presidenciais foram sempre polarizadas entre candidatos de centro (PSDB) ou centro-direita (Fernando Collor) e algum adversário do PT. Isso ocorreu mesmo em ocasiões em que não houve segundo turno, como em 1994 e 1998, quando Fernando Henrique Cardoso venceu já na primeira votação, tendo logo atrás Luiz Inácio Lula da Silva. O próprio petista derrotaria os tucanos José Serra e Geraldo Alckmin nas disputas seguintes e faria a sucessora, Dilma Rousseff, que, por sua vez, bateu nas urnas José Serra e Aécio Neves. Tudo ia assim até que em 2018 veio o furacão bolsonarista. O forte discurso da antipolítica embalado pela Lava-Jato tirou boa parte do eleitorado tucano — que minguou para 4,76% — e levou ao comando do país o inexpressivo estrambólico deputado Jair Bolsonaro. Pouco mais de dois anos depois, no entanto, o centro, diante dos estragos provocados pela pandemia na popularidade do presidente e do cenário de dificuldades gerais que o país atravessa, avalia que há alguma chance de reaver o eleitorado perdido (uma tarefa nada fácil, diga-se).
A esperança é relativamente nova, mas crescente. Até março, apesar dos números superlativos da crise sanitária, a possibilidade de que Bolsonaro não estivesse no segundo turno era raramente cogitada no meio político. Até então, a principal discussão era quem seria o adversário do presidente na etapa final da eleição — se alguém do centro ou se o candidato petista, provavelmente Fernando Haddad. O Supremo Tribunal Federal, contudo, virou o tabuleiro de cabeça para baixo ao anular as condenações de Lula e devolver os seus direitos políticos. A reentrada do ex-presidente na disputa mudou o cenário, e o outrora preso e inelegível Lula lidera agora as pesquisas. Diante desse quadro, figuras importantes do centro e analistas passaram a ver Bolsonaro como o alvo a ser abatido no primeiro turno. “Tem de haver o resgate do eleitor de centro-direita que votou no presidente, mas se arrependeu”, aponta o cientista político Antonio Lavareda. “A disputa é essa.”
A teoria faz sentido, mas há obstáculos enormes a ser vencidos para comprovar na prática essa chance. Hoje, a verdade é que o chamado centro democrático respira por aparelhos. Atentos a adversários com potencial de crescimento, tanto Lula quanto Bolsonaro têm feito movimentações políticas nos bastidores e adaptado seus discursos para se aproximar dos eleitores que fogem de posturas mais radicais. Se não bastasse esse avanço em sua área, o centro ainda patina no velho dilema primordial: não tem ainda um nome capaz de fazer sombra aos favoritos. O mais experiente deles, o ex-ministro Ciro Gomes (PDT), acabou perdendo espaço à esquerda com a volta de Lula ao páreo e tem feito movimentos ao centro, em diálogos com partidos como o DEM. Cheio de mágoas com Lula, a quem atribui a sabotagem de suas alianças na eleição de 2018, Ciro critica o ex-presidente sempre que tem chance. Mas sob a orientação do marqueteiro João Santana, o ex-guru das campanhas petistas, adotou uma nova estratégia: mirar diretamente aqueles que votaram em Bolsonaro. Em uma peça recente, o ex-ministro diz que Bolsonaro “traiu você, que acreditou no que ele prometeu”, “traiu a religião” e “traiu as Forças Armadas” — o vídeo teve mais de 1,1 milhão de visualizações no Twitter. “Nossa tese é a de que ele deve concentrar críticas ao governo, pela profunda divergência ideológica, mas também não deixar de destacar as diferenças substantivas com a visão estratégica do que o governo Lula representou”, diz o presidente do PDT, Carlos Lupi. Entre aliados de Ciro, tem eco a tese de que é possível um segundo turno entre ele e Lula. Dentro dessa avaliação, o alvo a conquistar é a classe média descrente que perdeu emprego e renda ou que não viu as suas aspirações se concretizarem, como havia acenado o discurso bolsonarista. Esse eleitor pode estar decepcionado com o capitão, mas não o suficiente para votar em um nome de esquerda.
Se é complicada a tarefa de Ciro, mais difícil ainda tem se mostrado a de outros partidos de centro, um degrau abaixo do pedetista nas pesquisas e com diversos interesses sobre a mesma mesa. Na quarta 16, um almoço em Brasília reuniu os presidentes do DEM, PSDB, Cidadania, Podemos e PV, além de políticos de MDB e Solidariedade, no que foi considerado um pontapé inicial mais concreto nos diálogos. O debate girou em torno da construção de uma agenda comum às siglas, sem entrar exatamente em nomes. As reuniões do grupo, que pretende se encontrar mensalmente, devem ganhar a adesão de Lupi e de gente do PSB, que também conversa com Lula. Por enquanto, o clima nesses encontros é de muita desconfiança e pouca resolução.
O lado bom é que, com a desistência de João Amoêdo (Novo) e de Luciano Huck — o apresentador anunciou nesta semana que renovou o contrato com a TV Globo —, o centro já tem pelo menos um caminho com menor congestionamento. Restam os nomes do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (DEM), articulador do almoço da última quarta, e dos quatro do PSDB que disputarão prévias em novembro: os governadores João Doria (SP) e Eduardo Leite (RS), o senador Tasso Jereissati (CE) e o ex-prefeito de Manaus Arthur Virgílio. Doria, que tem como trunfo ser uma espécie de “pai da vacina” no Brasil, curiosamente sofre rejeição no partido e amargou uma derrota na definição do formato da prévias (os votos de tucanos com mandato terão peso maior que os dos filiados, ao contrário do que queria o governador paulista). “Eu adoro prévias, disputei duas e venci duas. Elas somam, agregam, multiplicam e trazem força ao partido e aos candidatos que participam”, minimiza Doria.
Há, no entanto, quem ainda procure tirar uma carta da manga para a disputa, como o mandachuva do PSD, Gilberto Kassab, que pretende a todo custo filiar o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, hoje no DEM, para ser candidato ao Planalto. “Não vamos nos aliar nem a Bolsonaro nem a Lula, vamos ter candidato”, garante Kassab. O ex-ministro deve ter em suas fileiras outro nome que atua contra a polarização, apesar dos acenos a Lula: o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia, recém-expulso do DEM. E que também tira uma carta da manga ao propor uma espécie de prévia mais ampla, entre todos os nomes do “centro democrático”. “É necessário um fato novo, e fato novo é projeto coletivo, não candidaturas individuais”, afirma Maia. O ex-presidente da Câmara avalia que Bolsonaro mantém parte expressiva do eleitorado apenas à base do antipetismo, por ser Lula o principal adversário, e que esse eleitor pode ser atraído por uma alternativa moderada e bem posicionada na corrida eleitoral.
A grande questão para o centro é saber se o que deu errado em 2018 pode dar certo em 2022. Na eleição passada, Alckmin também farejou que precisaria tirar Bolsonaro do páreo para poder enfrentar um candidato de esquerda no segundo turno e mirou no capitão com duros ataques logo na largada da campanha. Não deu certo. Agora, pode ser diferente, uma vez que a desaprovação ao governo cresce desde o fim do ano passado e a pandemia se aproxima da marca de meio milhão de mortos, o que deve ser um fardo duro para Bolsonaro carregar na eleição. Manifestantes contrários ao governo têm voltado às ruas — haverá um ato no sábado 19, guiado pelo mote “Fora, Bolsonaro”. Mas também não se pode desprezar que outubro de 2022 ainda está longe, a pandemia vai arrefecer com o aumento da vacinação e a economia dá sinais, ainda que tímidos, de que começa a reagir. É bom lembrar que, assim como a esquerda sempre esteve no segundo turno das eleições, um presidente no cargo jamais morreu na praia do primeiro turno em uma eleição brasileira. Aliás, um presidente jamais deixou escapar a reeleição.
Com reportagem de Juliana Castro
Publicado em VEJA de 23 de junho de 2021, edição nº 2743