Os escombros da Lava-Jato que sobram depois do afastamento de Bretas
Operação fica sob a jurisdição de um juiz que já assume tendo de dar explicações
A Lava-Jato será um capítulo importante da história da política e da Justiça brasileira — mas só o tempo dirá como ela será definitivamente descrita. Em 2014, quando a operação começou, o país testemunhou uma série de episódios que aparentemente conduziriam à maior vitória de todos os tempos contra a histórica impunidade de políticos corruptos e empresários desonestos. Deputados, senadores, governadores e dois ex-presidentes da República foram presos. Revelou-se que os maiores e mais importantes partidos políticos do país funcionavam como verdadeiras organizações criminosas. O Estado e os cofres públicos haviam sido capturados para sustentar projetos de poder e riqueza pessoal. Anos depois, veio a reviravolta. Para desmantelar toda essa estrutura e punir os envolvidos, os responsáveis pela condução das investigações lançaram mão de métodos heterodoxos, alguns flagrantemente ilegais. Resultado: processos foram anulados e notórios culpados acabaram se safando, primeiro em Curitiba, onde tudo teve início, e agora no Rio de Janeiro.
Na terça-feira 28, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) afastou o juiz Marcelo Bretas de suas funções. Responsável nos últimos sete anos pelo braço fluminense da operação, o magistrado é acusado de cometer irregularidades na condução de processos e de atuar em parceria com investigadores e um advogado para pressionar réus a confessar crimes em troca de benefícios judiciais. Tudo isso ainda precisará ser devidamente comprovado no processo administrativo que foi instaurado para apurar as supostas transgressões, mas o fato é que a decisão do órgão, embora preliminar, por si só pode gerar desdobramentos nos mais de 100 processos conduzidos pelo juiz. Já é certo que os condenados vão usar o caso para pedir a anulação de suas sentenças, e têm chances concretas de sucesso. O ex-governador Sérgio Cabral, por exemplo, já deu os primeiros passos para pegar carona no infortúnio de Bretas.
Em uma carta em poder dos conselheiros do CNJ, Cabral relata ter sido pressionado por um emissário do juiz a abrir mão de todo o patrimônio que tinha em troca de uma suposta proteção à sua esposa. O episódio já integrava o conjunto de anexos da delação premiada do advogado Nythalmar Dias Ferreira Filho, revelado em 2021 por VEJA, mas agora é relatado também pelo próprio Cabral. Sentenciado a mais de 400 anos de prisão, o ex-governador já confessou os crimes que cometeu e se disse “viciado em dinheiro”. Apesar disso, se tudo sair como se prevê, daqui a algum tempo ele poderá afirmar que foi inocentado pela Justiça, que foi vítima de perseguição dos adversários e, quem sabe, até se apresentar para disputar um terceiro mandato — ao governo do Rio de Janeiro, obviamente. Entre corruptos e corruptores, são mais de 180 condenados por Bretas que também poderão escapar de punições, naquele que deve ser o penúltimo capítulo da Lava-Jato.
O fim da operação só não pode ser decretado porque ainda existem 240 processos em andamento na Justiça do Paraná. Os casos, porém, estão praticamente parados e não há nada que sugira que uma nova reviravolta possa acontecer. Recentemente, o juiz Eduardo Appio, que assumiu o comando da 13ª Vara Federal de Curitiba, a cadeira que antes foi ocupada pelo hoje senador Sergio Moro, criticou os métodos da Lava-Jato. Foi rebatido pelo hoje deputado Deltan Dallagnol, ex-coordenador da força-tarefa da operação, que o acusou de alinhamento ideológico com a “esquerda”. Segundo o jornal O Globo, o novo titular dos processos remanescentes em Curitiba utilizava a sigla “LUL22” — supostamente como referência ao seu apoio à campanha de Lula no ano passado — como senha no sistema eletrônico de acesso aos processos na Justiça. Além disso, o nome dele aparece como doador de simbólicos 13 reais para a campanha do petista. O juiz suspeita que seu CPF foi utilizado de maneira ilegal.
Por causa desse último episódio, Dallagnol apresentou uma notícia-crime à Polícia Federal para que seja apurado se a doação é verdadeira e se há evidências de ilícito eleitoral e uso do nome do juiz para ocultar doações clandestinas à campanha de Lula. O deputado também saiu em defesa de Marcelo Bretas, afirmando que o magistrado punido pelo CNJ “não tem sítio, não tem tríplex, não tem joias luxuosas, não tem contas no exterior, não tem dinheiro escondido na cueca, não tem diamantes, não tem barras de ouro” — numa provocação aos investigados que estão se safando. Detalhe: sítio ele tinha. Era em Itaipava e foi vendido recentemente por alguns milhões de reais. O fato é que essa disputa de narrativas ainda vai durar muito tempo. No futuro, os estudiosos poderão definir com mais precisão a importância da Lava-Jato na história do país. Nesse primeiro rascunho, a única conclusão possível é que não existem santos nas cenas política e jurídica brasileiras.
Publicado em VEJA de 8 de março de 2023, edição nº 2831