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O velho lance

Ao levantar a taça do campeão Palmeiras, Bolsonaro entrou no terreno antigo e pantanoso de trazer o futebol para a política

Por Alexandre Salvador Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 4 jun 2024, 16h11 - Publicado em 7 dez 2018, 07h00

O mineiro Aureliano Chaves (1929-2003), vice do último presidente do regime militar, João Figueiredo, era um homem espirituoso, capaz de em uma única frase resumir comportamentos atávicos. “Esperteza, quando cresce demais, engole o dono” era uma de suas máximas. Ela pode ser aplicada, sem risco de erro, aos políticos brasileiros que associam seu nome a times de futebol, usando o mais popular dos esportes para alimentar sua popularidade e o populismo. O problema é que se trata de um terreno pantanoso, que com frequência traz mais dissabores que glórias.

Convidado a erguer a taça de campeão brasileiro merecidamente conquistada pelo Palmeiras, Bolsonaro foi ao estádio, fez seu clássico gesto de arma em punho, trocou continências com o volante Felipe Melo e o treinador Luiz Felipe Scolari, ouviu gritos de “mito, mito” e teve motivos para sentir-se em casa diante de mais de 40 000 pessoas — lembre-se que ele foi batizado em homenagem a um dos grandes craques da história do alviverde paulista, Jair Rosa Pinto, e é, portanto, palestrino de quatro costados.

No entanto, como futebol e política nutrem uma relação de atração e repulsa, nem tudo saiu como esperado. Mesmo antes da partida ao fim da qual o Palmeiras receberia a faixa, postes nas cercanias do estádio paulistano avisavam, com fotos de Bolsonaro em que aparece vestindo as camisas do Flamengo, do Grêmio, do Santos, do Botafogo, do Fluminense e do Sport: “Malandro é o Bolsonaro. Todo ano é campeão”. Não há nada de mais em vestir a casaca de qualquer clube, evidentemente, mas a variedade do vestuário autoriza a impressão de esperteza, aquela mesma que engole o dono. “Bolsonaro, oportunista”, dizia outro pôster.

Nos dias seguintes ao da festa, um grupo de palmeirenses ilustres, de evidente coloração política diferente da de Bolsonaro, escreveu uma carta de protesto — fazem parte do rol o economista Luiz Gonzaga Belluzzo, o cientista Miguel Nicolelis e o cineasta Luiz Villaça. “Sequestraram nosso momento mais especial”, diz o documento, para em seguida detalhar o desconforto com a presença de Bolsonaro. “O incômodo tem fonte não apenas no histórico de declarações xenofóbicas que desonram nossas tradições, mas também nas diversas e documentadas manifestações racistas, misóginas e homofóbicas, entre outras.”

Quem mais explorou a ligação entre futebol e política na história recente foi o ex-presi­dente Luiz Inácio Lula da Silva, apesar da péssima experiência que viveu em 1989. Naquele ano, na véspera do segundo turno das eleições presidenciais, que perderia para Fernando Collor, Lula teve a mastodôntica ideia de ir ao Estádio do Morumbi para torcer contra o São Paulo, que jogava a final do campeonato com o Vasco da Gama. Notório corintiano, naquela tarde Lula anunciou que, no Rio, ele era Vasco. Sentou-se nas cadeiras cativas — e tomou uma vaia inesquecível. “Au, au, au, Lula pro Mobral”, gritavam os são-paulinos. No intervalo, Lula decidiu ir para casa, mas não aprendeu a lição de que associar-se a um clube, seja qual for, pode acabar dando em desastre.

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Médici, Sanchez e Lula
PASSADO - Médici e seu radinho (à esq.), e Sanchez e Lula: futebol e política (Assis Hoffmann/Ricardo Stuckert/Instituto Lula)

Na Presidência, e hoje esse capítulo é parte da história recente da corrupção brasileira, Lula, amicíssimo do presidente do Corinthians, Andrés Sanchez, fez de tudo para que seu time tivesse um estádio próprio. Intercedeu em favor de seu clube na negociação com a Odebrecht para a construção do estádio, no bairro de Itaquera. “Foi um pedido de Lula a meu pai”, revelou Marcelo Odebrecht em sua delação premiada, ao tratar da obra. Orçada inicialmente em 400 milhões de reais, a Arena Corinthians custou mais de 1 bilhão de reais ao ser alçada a palco da partida de abertura da Copa do Mundo de 2014. Esse favor em nome de Lula é alvo de investigação policial. A Justiça do Rio Grande do Sul já condenou o Corinthians e a Odebrecht, além do ex-presidente da Caixa Econômica Federal Jorge Fontes Hereda, a ressarcir 400 milhões de reais aos cofres do estado por considerar o empréstimo para a construção da arena, intermediado pelo BNDES, lesivo ao patrimônio público.

Nestes tempos de combate mais severo à corrupção, os políticos que se aproximam do futebol — sobretudo dos cartolas do futebol — precisam ter atenção redobrada. A participação de Bolsonaro e do senador eleito Major Olimpio (corintiano roxo) na cerimônia de premiação do Palmeiras foi decidida minutos antes pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF). Bolsonaro encontrou-se com o atual mandatário da CBF, Antônio Carlos Nunes, e seu sucessor no cargo, Rogério Caboclo, nos camarotes do Allianz Parque. Nunes e Caboclo são ligados ao ex-presidente da CBF Marco Polo Del Nero, banido do futebol por participar do maior esquema de corrupção já descoberto no esporte. Del Nero era o vice de José Maria Marin, preso e condenado nos Estados Unidos quando eclodiu o caso conhecido como “Fifagate”.

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Política e futebol andam de mãos dadas desde sempre. Em governos autoritários ou exageradamente nacionalistas, o esporte foi usado como instrumento de aproximação entre o poder e o povo. O general Emílio Garrastazu Médici, presidente do Brasil entre 1969 e 1974, tinha dois times de coração. No Rio Grande do Sul, seu estado natal, era Grêmio. Fora dele, torcia pelo Flamengo — um pouco como faz Bolsonaro, de vários corações. Como registrou o jornalista André Iki Siqueira na biografia do também jornalista e técnico de futebol João Saldanha, “Médici gostava de ver jogo no estádio ouvindo radinho de pilha, grudado ao ouvido. Saldanha, aliás, duvidava de que o rádio estivesse mesmo ligado. Provocava, dizendo que era só para enganar o torcedor”. Opositor do regime militar, Saldanha foi sacado do posto de treinador da seleção brasileira às vésperas da Copa do Mundo de 1970. A tese mais aceita é que não agradava aos militares a ideia de ver um comunista de carteirinha levar o Brasil ao tricampeonato mundial.

Eleito no pleito mais polarizado desde a redemocratização, Bolsonaro ainda navega na memória de sua vitória nas urnas. Sua popularidade mantém-se alta, mas é inexorável que sofra um declínio depois que assumir o governo e começar a enfrentar a dura realidade de administrar o país no dia a dia. É nesse momento, quando o aplauso popular começa a escassear, que as atitudes celebratórias num estádio de futebol adquirem uma nova leitura: deixam de ser a expressão legítima de um torcedor entusiasmado e passam a ser vistas como gesto de demagogia de um oportunista. Por isso, quando se trata de futebol, o melhor mesmo para um presidente é limitar-se a torcer pela seleção brasileira. Aí, sim, não há risco de erro.

Publicado em VEJA de 12 de dezembro de 2018, edição nº 2612

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