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O motivo do constrangimento dos militares envolvidos no julgamento da trama golpista

Figuras centrais na investigação tentaram manobras para evitar depor contra ou a favor de seus colegas de farda

Por Marcela Mattos Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO 8 jun 2025, 08h00

Para a Procuradoria-Geral da República, Jair Bolsonaro e outros trinta réus não só planejaram como colocaram em prática um roteiro para manter o ex-presidente no poder. A invasão e depredação do Palácio do Planalto, do Congresso e do Supremo Tribunal Federal teria sido o ápice da conspirata. Num processo que caminha de forma rápida, o Supremo Tribunal Federal (STF) encerrou na última semana a oitiva das testemunhas indicadas para falar sobre a suposta tentativa de golpe depois das eleições de 2022. Ao todo, foram dedicadas treze sessões para ouvir 52 pessoas escolhidas pelos advogados e pela acusação.

Encerrada essa fase, chamou atenção o comportamento dos militares, não só pelo conteúdo de certos relatos, mas também pelo indisfarçável constrangimento de alguns deles. Em conversas reservadas, generais que ocupam postos importantes e alguns oficiais de alta patente dizem que há um grande abismo entre o que aconteceu no dia 8 de janeiro de 2023 e a trama de uma suposta tentativa de golpe. Em outros termos, eles não assinam embaixo da tese da PGR de que esses fatos fazem parte do mesmo enredo. O desconforto é ainda maior pelo fato de terem sido obrigados a depor contra ou a favor na ação que envolve seus colegas de farda.

Na denúncia apresentada ao Supremo pelo procurador-geral Paulo Gonet, os militares têm um papel decisivo em todas as etapas do processo. Na organização do suposto golpe, eles estavam presentes às reuniões, analisaram documentos e discutiram as medidas que seriam impostas. Testemunha-chave, o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, fez um acordo de delação premiada, revelou detalhes de um plano que foi elaborado para anular as eleições e contou que, durante as discussões, soube que o então comandante do Exército, general Freire Gomes, se colocou terminantemente contra a trama — posição parecida com a do brigadeiro Baptista Jr., então comandante da Aeronáutica, que teria se recusado inclusive a analisar uma minuta que lhe foi apresentada. A falta de apoio militar, portanto, teria impedido a consecução do plano. A investigação também revelou que, ao contrário dos outros dois colegas, o então comandante da Marinha, almirante Almir Garnier, teria colocado suas tropas à disposição de Bolsonaro. Os relatos dos militares, por tudo isso, eram essenciais para a definição de um veredicto — tanto para a acusação quanto para a defesa.

CONVOCADO - Olsen: ele negou ter recebido ordens para mobilizar tropas
CONVOCADO - Olsen: ele negou ter recebido ordens para mobilizar tropas (Evaristo Sa/AFP)

O primeiro desse grupo a depor foi Freire Gomes. O ex-comandante, no geral, confirmou o que já havia dito à Polícia Federal, mas protagonizou um dos momentos mais tensos do processo até agora. Perguntado sobre a reação do ex-comandante da Marinha aos planos golpistas, o general disse que não havia percebido nenhum tipo de conluio entre o almirante e o presidente, que em momento algum ameaçou Bolsonaro de prisão e que a chamada minuta do golpe era um conjunto de tópicos embasados em aspectos jurídicos. O ministro Alexandre de Moraes o interrompeu e advertiu de que a versão era diferente da que havia sido dada à PF. “Vou dar à testemunha a chance de falar a verdade. Se mentiu para a polícia, tem que dizer que mentiu para a polícia”, afirmou o magistrado. Oficiais consultados por VEJA relatam que há uma enorme resistência dos militares em revelar particularidades de seus colegas de farda. A lealdade, explica um deles, também às vezes se mistura com o espírito de corpo e, na cultura militar, o delator é uma figura desprezível.

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O atual comandante da Marinha, almirante Marcos Olsen, tentou até o último instante se livrar de ter de prestar depoimento. Ele foi arrolado como testemunha de defesa de seu antecessor, de quem é amigo há mais de quatro décadas. Os dois ocupavam postos-chave no final de 2022. Garnier era o comandante da Marinha, enquanto Olsen era comandante de Operações Navais, órgão responsável por mobilizar as tropas no caso de uma ordem superior — ou seja, uma ordem de Garnier. Ao ser indicado, o atual comandante pediu ao STF que dispensasse a sua oitiva por desconhecer os fatos investigados. Olsen não apenas conhecia os fatos como já havia se manifestado sobre eles. No entanto, era sabidamente controverso o comandante militar de um governo que propaga ter sido alvo de uma tentativa de golpe e até de assassinato defender na Justiça um acusado de ser artífice da sublevação. A defesa de Garnier insistiu na audiência, ressaltando que o comandante da Marinha poderia ser conduzido coercitivamente caso não comparecesse. Como testemunha, Olsen falou brevemente e negou ter recebido qualquer ordem por parte de seu antecessor para empregar as tropas a fim de impedir a posse de Lula. Era exatamente isso que os advogados queriam que fosse dito em juízo.

INTIMADO - Gustavo Dutra: relato do general ajudou ex-ministro da Justiça
INTIMADO - Gustavo Dutra: relato do general ajudou ex-ministro da Justiça (Cristiano Mariz/Agência O Globo/.)

Situação parecida ocorreu com o general Gustavo Dutra, hoje no posto de vice-chefe do Estado-Maior. Ele foi indicado como testemunha de defesa do ex-ministro da Justiça Anderson Torres, com quem se reuniu dois dias antes dos ataques do 8 de janeiro — à época, Torres era o secretário de Segurança do Distrito Federal e Dutra era o comandante militar do Planalto, responsável, entre outras coisas, pela área diante do Quartel-General onde foi montado um acampamento para protestar contra o resultado das eleições. O general foi contatado pelo advogado de Torres um dia antes da oitiva. Ele solicitou a dispensa alegando que não tinha interesse em depor, mas os defensores não abriram mão da sua presença. Obrigado a falar, ele prestou um depoimento de apenas quatro minutos, limitando-se a relatar um “cafezinho” com Anderson Torres na véspera do atentado na Praça dos Três Poderes. Na ocasião, o militar demonstrou ao secretário que o acampamento do QG estava sendo desmobilizado, o que ajudou a tese da defesa de que Torres não teria sido omisso ao deixar o Brasil na véspera dos ataques.

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Na cúpula das Forças Armadas, a avaliação é que a presença dos militares, especialmente como testemunhas dos réus, amplia a desconfiança dentro do governo Lula, composto por figuras sabidamente refratárias aos fardados. “Ninguém gosta de participar daquilo”, resume um membro da cúpula militar. O ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, também enfrentou uma saia justa. Arrolado como testemunha pelo seu antecessor, o general Paulo Sérgio Nogueira, ele havia dado uma entrevista contando que Bolsonaro o ajudou a fazer a transição de governo junto aos militares e também disse que o 8 de Janeiro, na sua opinião, não foi uma tentativa de golpe. Nogueira desistiu na última hora da convocação — para alívio do auxiliar de Lula, que assim escapou de engordar as fileiras da tropa constrangida.

Publicado em VEJA de 6 de junho de 2025, edição nº 2947

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