O julgamento histórico que Bolsonaro e aliados podem enfrentar por trama golpista
Provável denúncia contra o ex-presidente dará início a um caso que deve se arrastar para além de 2025
Fruto de quase um ano de trabalho, o calhamaço de 884 páginas que contém o relatório da Polícia Federal a respeito da tentativa de golpe está nas mãos agora de Paulo Gonet, o procurador-geral da República, a quem caberá decidir se denunciará ou não os envolvidos ao Supremo Tribunal Federal. Para a PF, não há dúvidas: Jair Bolsonaro planejou, dirigiu e executou a trama, só não levada adiante por conta da falta de apoio da cúpula militar. Enquanto o comandante da Marinha, o almirante Almir Garnier, deu sinal verde ao movimento, os chefes do Exército (general Freire Gomes) e da Aeronáutica (tenente-brigadeiro Baptista Júnior) se opuseram firmemente à tentativa de ruptura democrática urdida nos subterrâneos do Planalto. Esses e outros detalhes do enredo chocante foram reconstituídos na investigação, que resultou no indiciamento de Bolsonaro e de 36 aliados, entre ex-ministros, altos oficiais da Forças Armadas e ex-membros do seu governo.
A pessoas próximas, Gonet já indicou que a análise da tentativa de golpe não se dará por um fato isolado e, sim, levando em conta uma sequência de eventos. O relatório da PF vai justamente nessa direção, traçando uma linha de tempo a partir de 2019, quando Bolsonaro já fazia lives questionando a integridade das urnas e bradando uma suposta vitória no primeiro turno de 2018. Os ataques chegaram ao ápice na campanha de 2022. Segundo a investigação, o movimento tinha dois objetivos: incendiar eleitores e fornecer argumentos que dariam sustentação ao golpe, sob a alegação de fraude na votação que levou Luiz Inácio Lula da Silva de volta ao Palácio do Planalto.
Essa linha do tempo elaborada pela PF deve ser a base para que Gonet possa fazer uma única denúncia englobando outras investigações concluídas sobre Bolsonaro e aliados: o caso das fraudes nos cartões de vacinação e o das joias sauditas (os dois processos já se encontram no gabinete do PGR). O mais provável é que Gonet tome a decisão no começo de 2025, o que dará início a um processo inédito na história do país. Uma ação penal colocará pela primeira vez no banco dos réus do STF oficiais de alta patente e um ex-presidente da República pelos crimes de golpe de Estado e abolição violenta do Estado democrático de direito, ironicamente incluídos no Código Penal sob sanção de Bolsonaro, em 2021.
Até que o ex-presidente e outros envolvidos tenham de sentar-se à frente dos ministros do Supremo para serem interrogados e julgados, há um longo caminho: oferta de denúncia, defesa prévia, oitiva de testemunhas, produção de provas e perícias, sendo que todas essas etapas serão fatalmente atravessadas por vários recursos judiciais, dos quais as defesas certamente usarão e abusarão. Só depois disso os ministros, um a um, irão votar. Segundo especialistas, mesmo se o STF fizer um grande esforço, dificilmente será possível concluir o caso até o final de 2025. Os crimes que estão no relatório de indiciamento têm penas máximas que chegam a 28 anos. Bolsonaro e os outros 36 envolvidos podem ter condenações ainda maiores por causa de agravantes penais ou a partir do entendimento de que delitos foram praticados mais de uma vez.
Levando-se em conta o relatório da PF, vai ser difícil escapar de uma punição duríssima. A situação de Bolsonaro ficou ainda mais comprometida porque os investigadores encontraram suas digitais em várias etapas de planejamento do golpe (confira o quadro). Mensagens encontradas no celular do tenente-coronel Mauro Cesar Barbosa Cid mostram o então ajudante de ordens confirmando que Bolsonaro autorizou a “Carta ao Comandante do Exército de Oficiais Superiores da Ativa do Exército Brasileiro”, feita com o objetivo de pressionar o general Freire Gomes, do Exército, a aderir à conspiração. A PF usa a expressão “pleno conhecimento” para afirmar que Bolsonaro tinha também ciência do plano para assassinar o ministro Alexandre de Moraes, o presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e seu vice, Geraldo Alckmin. A PF demonstrou que o documento com essa aberração criminosa foi impresso no Palácio do Planalto e levado pelo general Mario Fernandes até a casa oficial do presidente, o Alvorada, no dia 9 de novembro de 2022.
Há ainda no relatório da PF detalhes de lugares, dias e horários em que o ex-presidente esteve reunido com o assessor Filipe Martins e o advogado Amauri Saad para redigir a minuta do golpe. Dentre as 535 menções que o documento faz ao nome de Bolsonaro, várias repetem que ele revisitou o texto do decreto. O inquérito desnuda também militares graduados se movimentando com empenho para fazer acontecer não apenas o motim, mas também o assassinato daquelas autoridades, plano batizado por eles de “Punhal Verde Amarelo”. O general Braga Netto teria cedido a própria casa para uma reunião sobre a conspiração. Outro militar de alta patente e ex-ministro palaciano de Bolsonaro, general Augusto Heleno, rascunhava à mão, em uma agenda da Caixa Econômica Federal, as etapas da trama. O enredo tem um caráter amador, mas os radicais não estavam para brincadeira, chegando até a discutir que armas seriam usadas na ação, ainda de acordo com o relatório da PF.
A reação de Bolsonaro a essas acusações foi previsível: ele negou qualquer participação na tentativa de sabotar a democracia. “A palavra golpe nunca esteve no meu dicionário. Desde 2019 eu venho sendo acusado de querer dar golpe”, disse em entrevista coletiva convocada por ele, em Brasília, na segunda 25, antes de o relatório de indiciamento se tornar público. Ele negou qualquer contato com a minuta do golpe e negou também tê-la apresentado ao comando do Exército. “Não convoquei ninguém e não assinei nenhum papel”, afirmou. Na mesma entrevista, porém, admitiu que estudou opções de permanecer no poder que, segundo ele, estivessem de acordo com a lei, incluindo a decretação de um estado de sítio. “Todas as medidas possíveis dentro das quatro linhas, dentro da Constituição, eu estudei. Jamais faria algo fora das quatro linhas”, declarou, como se fosse absolutamente normal um presidente derrotado na tentativa de reeleição discutir com assessores e militares, no apagar das luzes de seu governo, no Palácio do Planalto, a decretação de um estado de sítio para tentar se manter no poder.
Outra argumentação que Bolsonaro já vem usando é a de que o golpe, mesmo que tenha sido pensado, não ocorreu e que o que está sendo investigado é um “crime de opinião”. O argumento é contestável porque os atos de preparação, se tiverem sido praticados para viabilizar um crime mais complexo, podem levar seus autores para trás das grades. Por mais inverossímil que seja a alegação de que ele não sabia de nada, a defesa deve explorar o fato de que boa parte das provas vem de depoimentos de outros investigados e do que foi dito por Mauro Cid no acordo de delação. Advogados do ex-presidente e dos militares envolvidos também devem tentar tirar o caso da Corte constitucional e levá-lo à Justiça comum ou militar, alegando um conflito de competência. Apesar de bater de frente com a jurisprudência da Corte, a tese tem adeptos de peso, como o ministro aposentado Marco Aurélio Mello. “Os chamados golpistas, tal como os arruaceiros de 8 de janeiro, não gozam da ‘prerrogativa’ de serem julgados pelo Supremo. É abrir a Lei das leis e perceber o previsto no artigo 102. O Supremo tudo pode? A resposta, constitucional, é desenganadamente negativa”, disse ele a VEJA.
Fora do campo jurídico, Bolsonaro vem tentando reforçar a narrativa de que o relatório da PF é mais um ato de perseguição movido por Alexandre de Moraes. O principal meio que ele deverá utilizar para reverberar isso é questionar à exaustão a imparcialidade do ministro no caso, alegando que ele desempenha ao mesmo tempo papel de vítima e de julgador. Bolsonaro apresentou, em fevereiro, uma alegação de impedimento do magistrado, que vai ser julgada no plenário virtual do STF a partir de 6 de dezembro. As chances de êxito não parecem muito promissoras: o presidente da Corte, Luís Roberto Barroso, mandou arquivar a ação e a PGR disse que não há indícios que desabonem a atuação de Moraes. Outra frente que tentará ser explorada pela defesa é a provável opção de Moraes por julgar o caso na Primeira Turma, que tem ministros em tese mais alinhados a ele: além de Moraes, integram o colegiado Flávio Dino, Cristiano Zanin, Cármen Lúcia e Luiz Fux.
A tentativa de desqualificar o ministro Moraes é uma aposta numa frente mais panfletária de defesa, que Bolsonaro considera essencial para permanecer politicamente vivo. A possibilidade de uma condenação por golpe pode tirá-lo das urnas até o fim da vida. De acordo com a Constituição, uma pessoa que tem condenação criminal não pode candidatar-se enquanto estiver cumprindo pena. Em um cálculo hipotético, se Bolsonaro receber uma sentença de 28 anos de prisão, quando ele puder se candidatar novamente, estará com 97. Isso não significa que o capitão vai desistir da ideia de esticar a corda ao máximo, lançando seu nome à Presidência em 2026 na pendência de recursos judiciais, assim como Lula fez em 2018.
A preocupação de Bolsonaro com uma condenação que, em última instância, pode até levá-lo à cadeia vem da resposta firme que a Corte tem dado nos casos que envolvem ataques antidemocráticos e da união dos ministros em torno de Moraes. Pessoas que depredaram e invadiram as sedes dos Três Poderes no 8 de Janeiro pegaram penas parecidas com as de homicídio. No caso do ex-presidente, dos militares de alto escalão e dos ex-membros do governo, a resposta tende a ser muito mais dura, pelo grau de responsabilidade. Não é que o Supremo seja um tribunal punitivista. Quem advoga na Corte há anos vê, inclusive, que esse tom se abrandou com o tempo. “No mensalão, o STF foi punitivista e aplicou penas altas, mas quando julgou a Lava-Jato foi mais garantista”, afirma o criminalista Alberto Toron, que atuou nos dois casos. O que acontece agora é que a existência do próprio Supremo foi posta em xeque. “Estamos falando de algo que poderia ter sido muito mais grave”, diz o advogado e doutor em direito do Estado Rodrigo Kanayama.
As revelações mostram que, independentemente das polêmicas do caso, houve uma movimentação intensa para sabotar a ordem institucional do país. Mais: essa conspiração, embora atabalhoada em determinados momentos, foi grave, reuniu gente graduada do governo e altos oficiais das Forças Armadas e foi tramada até no Palácio do Planalto, por gente com cargos estratégicos e muito próxima ao presidente. A colocação dos envolvidos no banco dos réus, em julgamento com alto poder de combustão política, pode criar momentos de tensão, principalmente se entrar em ano eleitoral, mas é inescapável que as responsabilidades sejam esclarecidas e que os culpados sejam punidos com justiça e rigor. As instituições, que deram mais de uma vez demonstrações de resiliência em meio a turbulências recentes, precisarão dar novas provas de maturidade para levar adiante, de forma imparcial, esse acerto de contas histórico.
O caixa-forte da trama
Maior bancada do Congresso e principal legenda da direita, o PL esteve diretamente envolvido na tentativa de sabotar a democracia no país, segundo a PF, que indiciou o presidente do partido, Valdemar Costa Neto, por atuar “de forma dolosa” na conspiração que se desenrolou quase no apagar das luzes do governo Jair Bolsonaro. A sigla contratou o Instituto Voto Legal para produzir um estudo, apresentado após a eleição de 2022, com informações falsas sobre a segurança das urnas eletrônicas. De acordo com a investigação, o objetivo disso era “corroer a confiança da população no sistema eleitoral e pavimentar o caminho para o golpe”. Para a PF, Valdemar “foi um dos responsáveis, juntamente com Jair Bolsonaro, por tomar a decisão de divulgar o conteúdo falso”.
Vários dos envolvidos na trama golpista estavam na folha de pagamento do PL, legenda com a maior fatia de dinheiro público (1 bilhão de reais). Somados, todos os indiciados levaram 4 milhões de reais desde 2022. Nesse período, Valdemar ficou com o maior quinhão do bolo (900 000 reais). Braga Netto levou mais que Bolsonaro (535 000 e 516 000, respectivamente). Outro indiciado, Tércio Arnaud Ferraz, recebeu 239 000 reais — a sua esposa, Bianca, mais 189 000. Também ex-auxiliar de Bolsonaro, Marcelo Câmara embolsou 80 000 reais. Arnaud e Câmara ficaram conhecidos como operadores do célebre “gabinete do ódio”, estrutura montada no Planalto para propagar fake news. Carlos Moretzsohn Rocha, do Instituto Voto Legal, levou 1,6 milhão de reais do fundo partidário. O deputado Alexandre Ramagem (PL-RJ), que chefiou a Abin e também foi indiciado, não está na folha do PL, mas abocanhou a maior fatia do fundo eleitoral na sua campanha a prefeito do Rio: 26 milhões de reais. Depois das revelações da PF, Valdemar submergiu. Ele e Jair Bolsonaro estão proibidos de se comunicarem desde fevereiro, por ordem do ministro Alexandre de Moraes, do STF.
Publicado em VEJA de 29 de novembro de 2024, edição nº 2921