Durante 24 horas por dia, todos os dias da semana, há um piloto de prontidão e um avião de caça armado e preparado para decolar da Base Aérea de Anápolis (GO), a 150 quilômetros de Brasília. Se o alarme for acionado, o oficial da Aeronáutica sabe o que fazer: pegar o capacete e o equipamento básico, montar em uma bicicleta sem marchas, percorrer o trajeto de aproximadamente cem metros até o avião e apontar para a capital federal. A bicicleta é importante, explicam os aviadores, para poupar o esforço físico da corrida e ganhar alguns preciosos segundos.
Até este 31 de dezembro, como ocorreu nos últimos quarenta anos, a aeronave deslocada para proteger Brasília – e, em termos militares, a soberania nacional – foi um Mirage, fabricado pela francesa Dassault. Agora, estas aeronaves chegaram ao fim de sua vida útil. A população de Anápolis, habituada ao rugido dos Mirage, vai ter de se acostumar com o barulho de novos aviões, mais discretos: a partir desta quarta-feira, a função caberá aos pilotos do F-5 – menor, menos potente e com autonomia de voo inferior, mas, segundo os pilotos, suficiente para cumprir as missões rotineiras até a chegada dos recém-adquiridos Gripen, da fabricante sueca Saab.
A troca no esquadrão marca o fim de quatro décadas de história. Com os Mirage, que foram adquiridos no final de 1972, o Brasil entrou na era dos jatos que ultrapassam a barreira do som – ou seja, superam 1.250 quilômetros por hora. Os caças franceses podem alcançar mais do que o dobro dessa velocidade.
Início – A Base Aérea de Anápolis entrou em operação em 1972, como parte do esforço para a implantação de um sistema de defesa aérea no país. Por isso, a história do 1º Grupo de Defesa Aérea, sediado na cidade goiana e responsável por proteger a capital federal, está ligada de forma estreita à aeronave francesa.
Os Mirage 3 foram o primeiro modelo de avião supersônico utilizado pelo Brasil. O início exigiu adaptações e sacrifícios. Nos oito primeiros anos, quatro aeronaves foram destruídas em acidentes aéreos. Em 2005, já esgotados e sem perspectiva de que o governo adquirisse os substitutos definitivos em um curto espaço de tempo, os antigos aviões foram trocados pelos Mirage 2000, adquiridos – usados – como uma espécie de tampão até a escolha definitiva das sucessoras.
Os pilotos do Mirage 2000 fazem parte de uma elite selecionada com rigor: o Esquadrão Jaguar, o mais cobiçado da Força Aérea, é composto por doze pilotos, que agora, com a aposentadoria das aeronaves francesas, devem se separar. Alguns serão removidos. Outros permanecerão em Anápolis à espera de novas orientações. Há a expectativa de que a Saab forneça aeronaves temporárias para que o Brasil utilize até que os primeiros Gripen NG, o modelo que será usado no país, estejam em operação. O prazo deve ser de pelo menos cinco anos.
O tenente-coronel Eric Breviglieri já seguiu para Canoas (RS), onde passará a trabalhar a partir de agora. Ele é o piloto que mais tempo voou com o Mirage 2000: foram cerca de mil horas pilotando a aeronave. Breviglieri foi o último comandante do Esquadrão Jaguar. “Quando o Brasil comprou os Mirage 2000, fui fazer o curso para a operação dos caças, na França, e voei com eles desde então. Tenho um sentimento de dever cumprido, porque foram aeronaves importantes para que o Brasil pudesse preparar o salto tecnológico que virá agora”, diz.
O voo – O site de VEJA acompanhou o último voo de um Mirage antes que os primeiros F-5 chegassem à Base Aérea de Anápolis e a transição tivesse início. Foi na manhã desta segunda-feira. Mais do que patrulhar o espaço aéreo na região, as decolagens servem para que os pilotos somem horas de voo, o que é essencial para o acúmulo de experiência e a progressão na carreira.
Quando o esquadrão estava completo, cada piloto fazia em média um voo por dia. Com a proximidade da aposentadoria dos Mirage, a frequência acabou reduzida. O desgaste dos Mirage 2000 envolve, especialmente, os armamentos, que estavam no limite da validade. Das doze aeronaves adquiridos, seis permaneceram em operação até o fim do prazo. As demais foram desativadas antes, o que permitia economia de recursos e o aproveitamento de peças.
Apesar de estarem em suas últimas horas de utilização e a pintura apagada da fuselagem denunciar o desgaste da aeronave, a parte mecânica dos caças precisa estar 100% para voar. Não há espaço para improvisos.
A preparação para a decolagem é complexa, e leva cerca de uma hora. Mecânicos checam a fuselagem em busca de vazamentos e rachaduras antes de o motor supersônico ser ligado.
Os aviões de treinamento voam desarmados. Mas a aeronave de prontidão fica preparada para o ataque: os Mirage podem carregar mísseis, bombas e possuem um canhão que dispara projéteis de alto calibre.
Cada detalhe é calculado: o cinto de segurança também é a alça que sustenta o para-quedas, caso seja preciso acionar o sistema de ejeção do assento. Os pilotos usam botas com bico reforçado, de aço, para evitar fraturas caso o pé se choque com o painel quando a poltrona é ejetada.
“A equipe fica pronta para ser engajada em caso de defesa aérea. O Comando de Defesa Aérea é quem aciona a unidade de Anápolis. Em cinco a dez minutos, a aeronave chega a Brasília”, explica o capitão e aviador Augusto Ramalho, responsável por fazer o voo final de um Mirage, nesta terça, de Anápolis até o Rio de Janeiro, onde ficará em exposição no Museu Aeroespacial. Os demais caças devem ter destinos semelhantes. Quando a decolagem é autorizada, o avião some nos céus em poucos segundos. A alta velocidade alta e a camuflagem cinza-azulada explicam o nome de batismo dos Mirage.
Seleção – A seleção para pilotos da elite da Força Aérea começa na concorrida prova para o ingresso na Academia da Força Aérea, em Pirassununga (SP). A concorrência chega a 170 candidatos por vaga.
Depois de passar quatro anos na academia, os novos oficiais são deslocados para Natal (RN), onde fazem o curso específico para aviação da caça. Em seguida, precisam morar em Campo Grande (MS), Porto Velho (RO) ou Boa Vista (RR) e pilotar aeronaves A-29 – também conhecidas como Super Tucano – em um período que varia de três a cinco anos. Só então o piloto pode se candidatar a uma vaga no grupo que pilota os Mirage.
Além dos F-5, que passam a ser as principais armas de defesa aérea do Brasil, o país possui outros dois tipos de aviões de caça: o AMX e os Super Tucano, ambos incapazes de andar acima da velocidade do som. As três aeronaves têm função de defesa, mas apenas o Mirage era apropriado para ataques. Como o Brasil não cogita bombardear outro território – o que exigiria jatos de altíssima velocidade e grande autonomia de voo -, os militares garantem que, mesmo sem as aeronaves francesas, o país estará bem protegido até a chegada dos primeiros Gripen NG.