Ministro com cabeça de juiz
Depois de se encastelar para elaborar seu pacote anticrime, Sergio Moro conversa com o Congresso para vender o projeto
As decisões de um juiz podem ser contestadas na instância superior, mas, em sua corte, ele é soberano. Na Justiça Federal de Curitiba, Sergio Moro era autossuficiente para, em uma canetada, ditar o destino de investigados na Lava-Jato, fossem eles secretários de empreiteiros ou ex-presidentes da República. Agora, à frente do superministério da Justiça e Segurança Pública, ele precisa adquirir uma habilidade que não se exige de magistrados: a negociação. Em 4 de fevereiro, o ministro convocou a imprensa para anunciar o pacote anticrime que ele pretende transformar em um dos pilares de sua gestão. Propôs dezenove tópicos que alteram catorze leis na área de segurança pública e combate à corrupção. A discussão na sociedade civil sobre a efetividade do plano e sua constitucionalidade começou no mesmo dia. Mas, em Brasília, a aposta é que o texto não avançará com a velocidade à qual Moro estava acostumado em Curitiba.
Quem convive com Moro sabe que o juiz é pragmático e preza resultados. A formulação do pacote anticrime não fugiu à regra. Encastelado em seu ministério e cercado pelos membros da força-tarefa da Lava-Jato que nomeou como secretários, o ex-juiz produziu o projeto rapidamente. Evitou reuniões com órgãos jurídicos, políticos e civis para cumprir a promessa de apresentá-lo ao público nos 100 primeiros dias do governo de Jair Bolsonaro. No fim da formulação, os secretários, embora orgulhosos do produto final, já admitiam entre si: vai ser difícil aprová-lo.
Apoiadores e críticos do pacote dizem de forma unânime que, ao se furtar ao diálogo com setores interessados nas medidas, Moro agiu como se ainda fosse juiz, e não um ministro de Estado. Especialistas surpreenderam-se com a fundamentação enxuta que o ministro apresentou. “Foi uma oportunidade perdida”, diz o professor da FGV Michael Mohallem, colaborador do estudo Novas Medidas contra a Corrupção, que serviu de inspiração para algumas das ideias levantadas por Moro. “Faltou tratar o texto com profundidade, sem receio de apresentar projetos complexos que demandariam trabalho do Legislativo.”
A pressa de Moro se justifica: ele quer deixar um legado, e rápido. Se Bolsonaro cumprir a promessa feita em campanha, Moro será indicado daqui a aproximadamente dois anos para a vaga no Supremo Tribunal Federal (STF) aberta pela aposentadoria do decano Celso de Mello. Um pacote complexo e bem fundamentado levaria meses para ser discutido e posto em votação no Congresso. Ainda mais importante é o timing. Há um indicativo claro de que a reforma da Previdência pautará todas as ações do Planalto no primeiro semestre do ano. Se o pacote anticrime viesse após a divulgação da reforma avalizada pela Presidência, os holofotes sobre ele seriam consideravelmente menores.
A atuação de Moro nos últimos dias indica uma tentativa de marcar território no Congresso. Se agiu como magistrado e não abriu a possibilidade de diálogo enquanto trabalhava no projeto, o ministro mostrou disposição, em um primeiro momento, para explicar as mudanças a políticos e a outros atores interessados. Em cada situação, modulou um discurso diferente para atender aos anseios da plateia. A advogados de São Paulo, pediu que não olhassem para ele com “fúria” e afirmou que “não há nenhuma possibilidade” de tornar a legítima defesa mais permissiva. A deputados, fez a explanação deixando bem claro que o crime de caixa dois não tem efeito retroativo. “A lei só retroage para beneficiar, e nunca para prejudicar”, disse.
O perfil monocrático, porém, ainda se impõe. A primeira romaria de destaque foi um café da manhã organizado pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, com as lideranças dos partidos que endossaram sua recondução ao posto. Moro falou por vinte minutos sobre como seu pacote atendia aos anseios da população e não abriu espaço para perguntas. Em seguida, o ministro se reuniu com os governadores, e de novo falou sozinho, sem ouvir os questionamentos. Num encontro com a “bancada da bala”, voltou a apresentar o projeto sem permitir que indagações fossem feitas. Mais grave, não obedeceu aos ritos e hierarquias do Congresso: aceitou o convite do presidente da frente parlamentar, o deputado Capitão Augusto (PR-SP), sem consultar a liderança do governo na Câmara, o desacreditado Major Vitor Hugo (PSL-GO). “Ele aprendeu que o voluntarismo faz mal nessas horas”, disse, reservadamente, um líder partidário.
Moro tirou lições do episódio. A um pedido do Instituto de Garantias Penais (IGP) para que fizesse uma audiência pública sobre o tema, respondeu, por ofício, que não é obrigatória a realização de debates, e que haverá espaço para sanar dúvidas na tramitação no Legislativo. Na quinta-feira 14, afirmou a juízes em Brasília que seu projeto será enviado na semana que vem ao Congresso. Mas auxiliares que trabalham com o ministro Onyx Lorenzoni, da Casa Civil, dizem que o pacote não andará até que o da Previdência esteja com a aprovação encaminhada no Legislativo. O governo crê que autorizar a tramitação paralela de duas leis sensíveis implicará concessões nas duas frentes. No caso do pacote anticrime, a probabilidade de mudanças e desmembramentos é grande. Um dos auxiliares próximos a Lorenzoni disse que a criminalização do caixa dois só passa se disser explicitamente que crimes anteriores à aprovação da lei não serão punidos — o próprio chefe da Casa Civil admitiu que se valeu da prática no passado. Já as lideranças do DEM e do PSDB vão sugerir que o pacote seja anexado a outros projetos que estão parados na Câmara.
A posição do governo está alinhada com as prioridades de Rodrigo Maia. O presidente da Câmara já disse que o pacote anticrime está em segundo plano. Maia declarou publicamente estar comprometido com a reforma que o ministro da Economia, Paulo Guedes, enviará à Câmara, e prometeu concentrar todos os esforços em sua aprovação. Os cálculos mais otimistas da Casa Civil dão conta de que a Previdência passará pelo rito das comissões e será pautada no plenário da Câmara em maio. A prioridade para os temas econômicos só não agrada à “bancada da bala”. O deputado Capitão Augusto se movimenta para pressionar Bolsonaro por uma tramitação conjunta: “Se a população estivesse mais preocupada com a economia, ela teria votado no Alckmin. Fui a quase todas as reuniões de campanha, e ninguém falava em Previdência, só em segurança”. Parlamentares experientes da base do governo também veem com preocupação a possibilidade de o pacote anticrime tramitar junto com a reforma da Previdência. Em última instância, caberá a Maia definir o rito do pacote, e já há uma fila de deputados batendo à sua porta para ser o relator, dado seu potencial eleitoral.
O pacote de Moro consagra a chegada da Lava-Jato ao Poder Executivo. Várias das medidas que lá constam para combater crimes de colarinho-branco são demandas antigas da força-tarefa de Curitiba e já estavam presentes no fracassado projeto das Dez Medidas contra a Corrupção. As propostas que mais fizeram barulho, porém, estão no campo da segurança pública, e não do combate à corrupção. Moro pretende redefinir os termos que versam sobre legítima defesa no Código Penal, atendendo a uma promessa de campanha feita por Bolsonaro. Segundo a proposta, um juiz poderia absolver uma pessoa que venha a ferir ou matar alguém se o ato for resultado de “escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. O pacote também traz um artigo para proteger especificamente o agente policial em conflitos armados e situações de risco. Nas Páginas Amarelas da edição anterior de VEJA, o ministro negou que a mudança seja uma “licença para matar”. O policial brasileiro, porém, já morre e mata com trágica assiduidade. Só em 2017, o Brasil teve 256 policiais militares mortos em confrontos enquanto estavam fora de serviço, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública — que também registra 5 159 civis mortos em ações policiais. Ainda que o ministro negue que a medida permita tolerância com a violência dos agentes da lei, resta a forte possibilidade de que ela seja lida como validação da violência que já se pratica em ações como a que ocorreu na favela Fallet-Fogueteiro, no Rio. No dia 8, a Polícia Militar informou que reagiu a traficantes “fortemente armados” no lugar, matando quinze suspeitos de envolvimento com o tráfico. Familiares não negaram que eles tivessem relação com o tráfico de drogas, mas denunciaram que os suspeitos foram torturados e executados pela PM. “Os meninos apanharam muito, deu para ouvi-los gritando e chorando. Depois, os policiais os mataram e levaram os corpos”, disse a vizinha da casa onde dois irmãos foram mortos. Atestados de óbito dos suspeitos trazem indícios de que houve mutilações nos corpos e traumatismo craniano. “O episódio pode servir para balizar a leitura que Moro propõe da Justiça, diante do que já é feito na prática”, diz o ouvidor-geral da Defensoria Pública do Rio, Pedro Strozenberg.
Especialistas são céticos quanto à possível eficácia do pacote naquilo que é seu objetivo declarado: combater o crime. A premissa central parece ser que o endurecimento das penas por si só desestimulará a ação da bandidagem. Certas medidas de fato corrigem imperfeições do sistema brasileiro — é o caso da autorização para que condenados por crimes hediondos nos tribunais do júri comecem a cumprir pena logo após a pronúncia da sentença. Mas há o risco de ampliar a população carcerária, sobrecarregando presídios que já estão superlotados. E a sugestão de que condenados associados a organizações criminosas sejam impedidos de progredir de regime contraria um entendimento já pacificado pelo STF. Juristas costumam citar a famosa frase do iluminista Cesare Beccaria de que não é o tamanho da pena que desestimula o crime, e sim a certeza da punição. Ou seja, nenhuma pessoa consulta o Código Penal antes de cometer um crime.
No campo do combate à corrupção, o diretor executivo da organização Transparência Internacional, Bruno Brandão, destaca que um dos trunfos do pacote anticrime é romper a inércia que marcou o debate nos últimos anos, mas alerta para os sinais contraditórios enviados pelo governo. Em janeiro, o Planalto emitiu um decreto que desfigura a Lei de Acesso à Informação ao ampliar o número de funcionários do governo que podem impor sigilo a documentos oficiais. “O decreto presidencial é um grave retrocesso. Foi feito a portas fechadas e manda um sinal na direção contrária à iniciativa de realizar reformas estruturais”, avalia Brandão. No mesmo dia em que Moro anunciou o pacote à imprensa, o ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, também deu poder a mais dez diretores da Abin para porem as ações do órgão sob sigilo de quinze anos. Moro não esboçou protesto contra o enfraquecimento dos mecanismos de transparência. Como se não soubesse que a corrupção viceja na sombra.
Com reportagem de Maria Clara Vieira
Com o apoio da toga
Algumas das medidas centrais do pacotão apresentado pelo ministro Sergio Moro contam com o apoio de sua classe de origem, a magistratura. Pesquisa realizada pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) mostrou que cerca de 90% dos juízes estão alinhados com a ideia de instituir no país o plea bargain. Inspirado no direito americano, o instituto contemplaria um acordo entre o Ministério Público e a defesa para encerrar processos de forma mais célere e sem julgamento. Os juízes, porém, querem a prática americana com uma adaptação para manter sua autoridade: pedem para participar da formulação dos pactos.
Outra pauta que encontra ressonância entre os juízes de primeiro grau — 90% são a favor — é o uso de videoconferência em interrogatórios e na instrução do processo. O relatório da pesquisa, com quase 400 páginas, não tem pergunta específica sobre a prisão após condenação em segunda instância, um dos pontos mais inflamáveis do pacote. A AMB, no entanto, diz que um “cruzamento de dados” posterior permitiu concluir que 80% dos juízes são favoráveis.
Em geral, os magistrados brasileiros são uniformes em suas opiniões. A maioria, por exemplo, apoia a criação de uma corregedoria interna à qual os ministros do STF estariam submetidos. Mas há divisões conforme o grau do juiz. Audiências de custódia não são unânimes na primeira instância, mas contam com a simpatia do segundo grau.
A pesquisa traça um quadro social e cultural amplo do Judiciário. Revela que os magistrados atuais são na média mais velhos do que em 1996, ano da pesquisa anterior — hoje, 45% dos juízes de segundo grau têm 61 anos ou mais, contra 27% há 23 anos.
O quadro socioeconômico não trouxe alterações significativas. Quase 70% dos juízes são do sexo masculino, e mais de 80% se declaram brancos e casados. Os magistrados de segundo grau com casa própria superam 90%. Mais da metade dos juízes de primeiro grau cursou direito em universidades privadas — o índice entre os de segundo grau é de 50%. E só 30% dos pais dos magistrados têm escolaridade baixa, o que permite concluir que poucos filhos de famílias de baixa renda se tornam juízes. A vasta maioria mostra apreço por aspectos cerimoniais da carreira, como o uso de toga e o emprego de linguagem formal. Luís Roberto Barroso, ministro do STF, foi o juiz vivo mais citado como modelo pelos magistrados brasileiros.
Publicado em VEJA de 20 de fevereiro de 2019, edição nº 2622
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