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Mesmo inelegível, Bolsonaro vive realidade paralela como cabo eleitoral

Cada vez mais encrencado no inquérito do golpe, ex-presidente arrasta multidões por onde passa

Por Laísa Dall'Agnol Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 3 jun 2024, 17h22 - Publicado em 8 mar 2024, 06h00

Correria, gritos, palmas, choro: o cenário de euforia se repete em todas as cidades visitadas pelo capitão. Em meio a um “caos organizado”, os admiradores, a postos, se espremem para disputar quem fará o melhor clique. Os mais sortudos conseguem chegar perto e garantir um aperto de mão, um aceno ou até mesmo um sorriso. O clima é de consagração popular nas andanças que Jair Bolsonaro tem feito por algumas cidades do país, numa espécie de estreia oficial de seu papel como cabo eleitoral para candidatos de direita ao pleito municipal de 2024. Como se fosse uma espécie de universo paralelo da negação, a totalidade da plateia presente a esses eventos ignora o fato de que o “mito” encontra-se inelegível e cada vez mais encrencado com as investigações a respeito do inquérito do golpe.

CAUTELA - Valdemar: cuidados para não irritar Alexandre de Moraes
CAUTELA - Valdemar: cuidados para não irritar Alexandre de Moraes (Cristiano Mariz/Agência O Globo/.)

O próprio Bolsonaro age como se nada estivesse acontecendo e fica focado em seu projeto político: as eleições municipais de outubro, quando os brasileiros irão às urnas para escolher prefeitos e vereadores. De olho no pleito, o ex-presidente deu o pontapé inicial na “turnê” eleitoral na última semana, em evento com lideranças do PL em Salvador. Ciceroneado pelo presidente estadual da sigla, o ex-ministro da Cidadania João Roma — e também pré-candidato à capital baiana —, Bolsonaro deu o tom do que serão suas próximas viagens. Com uma “mãozinha” da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro, a ideia é que o casal turbine palanques regionais. Michelle ficará encarregada dos encontros do PL Mulher, ala feminina da sigla presidida por ela e que tem impulsionado candidaturas de mulheres “conservadoras”. O trunfo da ex-primeira-dama inclui ainda sua interlocução com o público evangélico e com a comunidade de pessoas com deficiência. Quando possível, o cenário dos sonhos de todo e qualquer candidato é que Michelle e Bolsonaro estejam lado a lado nas aparições em seus redutos.

TURNÊ - João Roma: visita a pré-candidato de Salvador marca pontapé eleitoral
TURNÊ - João Roma: visita a pré-candidato de Salvador marca pontapé eleitoral (Reprodução/Instagram)

Por ora, a entourage de Bolsonaro é enxuta, até mesmo um tanto quanto mambembe para o tamanho das pretensões — ele geralmente é acompanhado por, no máximo, três auxiliares “oficiais”: um fotógrafo, um assessor e um segurança. A sua presença é cobiçada e disputada por prefeitos e vereadores, que querem o “selo de qualidade” de posar na foto ao lado do ex-presidente. A adesão expressiva ao ato na Paulista e os resultados de pesquisas recentes que mostram a resiliência e até o crescimento de sua popularidade brilham aos olhos de postulantes. Um deles é o ex-ministro da Saúde Marcelo Queiroga (PL), pré-candidato à prefeitura de João Pessoa. “O ato motivou muito, porque o segmento conservador ficou ressabiado após as eleições, estava se resguardando de grandes manifestações populares. Mas o evento serviu até para aparar arestas dentro do partido. Bolsonaro é uma liderança muito forte e esse capital político é importante não apenas para 2024, mas para que em 2026 haja um cenário diferente no país”, diz.

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Um dos próximos destinos da caravana deve ser João Pessoa, na Paraíba, onde aliados já começaram a movimentação para recebê-lo nas próximas semanas. Também estão na “fila” capitais como Recife, pleiteada pelo ex-ministro do Turismo Gilson Machado (PL), Natal, Belém e Campo Grande. “É um momento de muita articulação. Vamos marcar presença em todas as cidades: se não for com candidato a prefeito ou a vice, vamos pleitear cargos de vereador, que é tão importante quanto”, diz Machado. Além das candidaturas próprias, Bolsonaro e o PL têm fechado alianças. Em São Paulo, com o cortejo do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos), apoiará a reeleição de Ricardo Nunes (MDB).

ALIADOS - Ao lado de Tarcísio de Freitas e Ricardo Nunes após ato na Paulista: apoio bolsonarista à campanha paulistana
ALIADOS - Ao lado de Tarcísio de Freitas e Ricardo Nunes após ato na Paulista: apoio bolsonarista à campanha paulistana (//Divulgação)

A estreia no papel de cabo eleitoral para as disputas municipais deste ano tem ainda um certo grau de improviso. Segundo aliados, não há um planejamento interno no partido, por ora, do roteiro de viagens e nem dos encontros com lideranças. “O cronograma está sendo organizado por ele mesmo. Ele compra a passagem e vai”, diz Gilson Machado. A ida ao Rio Grande do Sul, inclusive, foi decidida de última hora, afirma um nome próximo a Bolsonaro. No final de semana que esteve no interior de São Paulo, recebeu o convite para participar da feira gaúcha do agronegócio por intermédio de empresários e políticos da região. Três dias depois, estava de malas prontas e pé na estrada rumo à Região Sul do país.

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O que explica, até certo ponto, a falta de um planejamento mais consistente é o avanço da Polícia Federal e do cerco do Supremo Tribunal Federal sobre os principais caciques do partido. A operação deflagrada em fevereiro, no âmbito da investigação que apura uma tentativa de golpe de Estado para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, impôs restrições a Bolsonaro, a Valdemar Costa Neto, presidente do PL, e a Walter Braga Netto, responsável pela articulação política. Alvos da investida, os três foram proibidos pelo ministro Alexandre de Moraes de manter qualquer forma de contato. As medidas cautelares acertaram em cheio o dia a dia das lideranças e forçaram uma reorganização de agendas. Braga Netto, que antes despachava da sede do PL em Brasília, agora está no Rio de Janeiro para evitar possíveis embaraços judiciais. De lá, segue envolvido no planejamento estratégico de candidaturas: a meta do partido é eleger mais de 1 000 prefeitos por todo o Brasil, além de um número “expressivo” de vereadores. As prioridades do general têm sido a articulação em estados como Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, Pernambuco, Paraíba, além do próprio Rio de Janeiro. Por lá, terá o “reforço” do vereador Carlos Bolsonaro, que em breve consolidará a migração do Republicanos para o PL e assumirá o comando estadual da legenda no estado. Ele também será um dos coordenadores da campanha do deputado federal Alexandre Ramagem para a prefeitura carioca. De Brasília, Valdemar também tem feito sua parte, apesar das limitações. No último dia 28, reuniu dezenas de presidentes de diretórios estaduais para discutir “estratégias e diretrizes” do partido com foco nas eleições. O encontro, que deverá ser periódico, reuniu nomes fortes do bolsonarismo, como os senadores Magno Malta (ES) e Rogério Marinho (RN) e o governador de Santa Catarina, Jorginho Mello. Segundo aliados, Valdemar elegeu dois “interlocutores” principais frente às sanções de Moraes: o líder da bancada na Câmara, Altineu Côrtes (PL-RJ), e o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ).

ALIANÇA - Alexandre Ramagem e Carlos Bolsonaro: apoio à prefeitura do Rio
ALIANÇA - Alexandre Ramagem e Carlos Bolsonaro: apoio à prefeitura do Rio (Reprodução/Instagram)

De certa forma, a caravana bolsonarista em curso segue um estilo semelhante à da campanha bem-sucedida que levou o capitão ao Palácio do Planalto, quando venceu usando como uma de suas principais armas o celular. Naqueles tempos, o séquito que o acompanhava também era diminuto e havia sempre um ar de improvisação nas andanças e movimentações do candidato. Como se sabe, acabou dando certo, e o capitão faz questão de repetir a dose. Em seus quatro anos de governo, Bolsonaro manteve esse estilo “espartano” como sua marca registrada. Nas viagens de agora país afora, prefere comer em restaurantes baratos e se hospeda em hotéis sem muito conforto. Quando pode, economiza até no preço das passagens aéreas: segundo aliados, escolheu na última visita a São Paulo um voo de madrugada por custar metade do preço do que outra opção mais “confortável”.

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A escolha de voos de carreira, inclusive, chegou a ser alvo de divergência com Valdemar Costa Neto, que queria alugar uma aeronave privativa para que o ex-­presidente pudesse percorrer mais cidades em um só dia, maximizando o tempo na campanha. Com receio de possível atentado, no entanto, ele bateu o pé e declarou que só viajaria em aviões comerciais. Explicação: segundo o capitão, fiel ao seu estilo de conspiração permanente, haveria menos “riscos de sabotagem”. Enquanto coloca seu bloco na rua, crescem as evidências de sua suposta participação como cabeça de um golpe de Estado para tirar Lula do poder após as eleições de 2022. Até que seja batido o martelo, Bolsonaro não é réu e segue livre — e em plena campanha.

Publicado em VEJA de 8 de março de 2024, edição nº 2883

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