Lula tenta se aproximar da bancada evangélica, mas enfrenta resistências
Os acenos do petista têm trombado em um bloco do Congresso que passou os últimos quatro anos operando como tropa de choque de Bolsonaro
“Ainda não se sabe quem será o novo presidente da bancada, mas qualquer um que tiver o apoio de Lula está fora do páreo.” A frase, repetida em tom de piada por Otoni de Paula (MDB-RJ), bolsonarista assumido e candidato ao posto, expressa bem as dificuldades do governo eleito em pavimentar vias de comunicação com os 102 deputados (20% da Câmara) e treze senadores (16% do total) que integrarão a Frente Parlamentar Evangélica (FPE) a partir do ano que vem. Desde que se elegeu, Luiz Inácio Lula da Silva tem enviado sinais para se aproximar do bloco, numeroso o suficiente para movimentar a balança em votações críticas. Nesse caso, porém, os acenos do Palácio do Planalto, sempre tão decisivos para destravar impasses no Legislativo, têm trombado com a resistência de quem passou os últimos quatro anos operando como tropa de choque de Jair Bolsonaro e tem orgulho em se declarar conservador. O PT conseguir dobrar a chamada bancada da Bíblia, no atual contexto, beira o milagre.
Esforços não faltam. A primeira rasgação de seda explícita será na posse de Lula, em 1º de janeiro: no megashow organizado pela futura primeira-dama Rosângela da Silva — apelidado de “Lulapalooza” —, um dos convidados é o pastor Kleber Lucas, artista de ponta do universo gospel e uma espécie de contrapartida à presença de figuras como a drag queen Pabllo Vittar, que vinha recebendo críticas dos políticos conservadores. A intermediação do convite foi feita pela senadora evangélica Eliziane Gama (Cidadania-MA) e pelo secretário de Cultura do PT, Márcio Tavares, já contando com a adesão do pastor pop que gravou o hino Deus Cuida de Mim em dupla com Caetano Veloso. “Quero construir pontes. Tenho amigos progressistas e companheiros da ala conservadora”, confirma Lucas, que dividirá o palco com Leonardo Gonçalves, cantor ligado aos adventistas.
Outro movimento para cooptar a bancada da Bíblia foi a incorporação dos Evangélicos pelo Estado de Direito, que reúne religiosos progressistas, ao grupo de trabalho da transição que trata da interlocução com a sociedade civil. O grupo esteve recentemente por uma hora e meia com Lula, o vice-presidente eleito, Geraldo Alckmin, e a presidente do PT, Gleisi Hoffmann, e dali saiu o compromisso de criação de um Conselho de Participação Social, submetido diretamente à Secretaria da Presidência da República. O novo órgão não será composto apenas de religiosos, mas eles solicitaram que parte dos assentos seja reservada a entidades ligadas às igrejas evangélicas. “Hoje quem acolhe o povo preto e pobre na periferia das grandes cidades são as igrejas. A esquerda precisa falar com ele sem achar que tudo se resume à luta de classes”, ensina Ariovaldo Ramos, pastor da igreja Reformada e presidente da frente de pastores progressistas.
Internamente, o PT vê no Conselho uma forma de fortalecer as igrejas independentes e, assim, abrir um canal de diálogo alternativo com o eleitorado evangélico, praticamente dominado por Bolsonaro na eleição passada. Na campanha, reagindo à virulência de pastores das maiores denominações que chegaram a compará-lo com o diabo e ameaçaram expulsar fiéis que o apoiassem, Lula lançou um documento em que se comprometeu a não defender a legalização do aborto nem permitir que a escola interfira na educação familiar. Por ora, a ordem é seguir na mesma linha e manter as agendas historicamente encampadas pela esquerda no limbo do Congresso. “O momento exige união e ela não passa pelas pautas de costumes”, resume a senadora Eliziane.
Ela vem contatando integrantes da bancada da Bíblia em busca de alianças, ainda sem grande sucesso. Os deputados e senadores que integram a FPE sabem que cresceram o suficiente para impor sua vontade, o que ficou evidente na tradicional ceia de fim de ano da bancada, onde o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), marcou presença para pedir apoio à sua reeleição. Lira saiu de lá com um documento que elenca sete itens inegociáveis para o grupo, entre eles o estatuto da família (que proíbe o casamento gay) e o do nascituro (que impede o aborto até em caso de estupro). “O PT pode querer se aproximar, mas não nos engana mais”, provoca o deputado Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), atual presidente da FPE, que almeja ser um dos vices de Lira. Ligado ao bolsonarista raiz Silas Malafaia, ele foi sondado por assessores de Lula, mas até agora não quis saber de conversa.
No Congresso, é dado como certo que os esforços do novo governo só devem surtir algum efeito imediato na Assembleia de Deus de Madureira, do bispo “rebelde” Abner Ferreira, e na Igreja Universal, de olho na verba oficial em suas emissoras de rádio e TV — ambas estão marcando encontros com Lula em janeiro por intermédio do pastor Caio Fábio, antigo amigo do petista, responsável pela reaproximação dele com Marina Silva. “Para o povo evangélico, será preciso fazer um governo imparcial, impoluto. As lideranças, porém, são movidas por outros interesses”, ressalva Fábio. Apesar dos obstáculos, a dança de aproximação do PT com a bancada da Bíblia segue animada. Os petistas entendem que não haverá conversão em peso, mas esperam abrir flancos na muralha que permitam uma convivência civilizada no Congresso. Os evangélicos, por sua vez, sabem que não terão as portas do Planalto escancaradas, como na gestão Bolsonaro, mas que não é produtivo para suas demandas se fechar ao diálogo. Achar o meio do caminho dependerá de o pragmatismo ser capaz de, como a fé, mover montanhas.
Publicado em VEJA de 21 de dezembro de 2022, edição nº 2820