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Lula ignora alertas e leilão de arroz vira fiasco para sua gestão

Ideia equivocada de importar o grão para regular o mercado nacional resulta em um certame cheio de suspeitas e em um tiro no pé dado pelo presidente

Por Valmar Hupsel Filho, Laísa Dall'Agnol Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO , Isabella Alonso Panho Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 14 jun 2024, 11h53 - Publicado em 14 jun 2024, 06h00

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva vinha desde o início do ano manifestando preocupação com a alta do preço dos produtos da cesta básica. Entre novembro de 2023 e fevereiro de 2024, os alimentos foram os principais itens a puxar para cima a inflação — e para baixo a popularidade do presidente.

Em março, Lula se reuniu com Rui Costa (Casa Civil), Fernando Haddad (Fazenda), Paulo Teixeira (Desenvolvimento Agrário), Carlos Fávaro (Agricultura) e Edegar Pretto (Conab) para discutir o que fazer. E ouviu que a situação era sazonal, fruto das condições climáticas, e que o preço do arroz iria se estabilizar com a safra que era colhida no Rio Grande do Sul, maior produtor do grão.

Em abril, Lula voltou ao assunto ao dizer que se arrependia de não ter já importado arroz da Venezuela para derrubar o preço no Brasil. A tragédia gaúcha fez o presidente tirar a ideia do papel. A medida, no entanto, pensada para ser positiva, abriu nova frente de enfrentamento com o agronegócio, deu origem a várias suspeitas de irregularidades e terminou sendo um dos maiores fiascos do atual governo.

A má ideia já dava sinais de que não terminaria bem desde o início. Foi contestada por agricultores, inclusive na Justiça, e se materializou em um leilão no qual uma loja de queijos, uma locadora de veículos e uma sorveteria ganharam contratos de centenas de milhões de reais. O alarme disparou com ainda mais força quando surgiram evidências de que pessoas ligadas ao secretário de Política Agrícola, Neri Geller, atuaram como intermediários de firmas envolvidas na disputa.

Nem um grão de arroz havia chegado ao mercado nacional quando o governo decidiu anular o leilão em que adquiriu 264.000 toneladas do produto a 4 reais o quilo, reconhecendo que as companhias talvez não pudessem cumprir as exigências. Pior: anunciou a demissão de Geller, um ex-ministro da Agricultura de Dilma que quase virou ministro da mesma pasta sob Lula e que se tornou, assim, o primeiro integrante do alto escalão do terceiro mandato do petista a cair sob suspeita de não ter agido de modo republicano.

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“CRISE CRIADA” - Tereza Cristina: “Não havia problema de abastecimento”
“CRISE CRIADA” - Tereza Cristina: “Não havia problema de abastecimento” (Marcos Oliveira/Ag. Senado)

Alertas não faltaram ao governo sobre a infelicidade da iniciativa. No começo de maio, quando Lula anunciou a intenção, produtores afirmaram que a medida não era necessária porque 85% da safra havia sido colhida, o suficiente para abastecer o mercado interno. O problema era outro: levar o produto para os consumidores depois do cenário de terra arrasada da infraestrutura gaúcha. Economistas apontaram ainda a possibilidade de o governo fazer dumping (venda a um preço inferior ao custo de produção), o que significava grave interferência no mercado.

A oposição apontou o uso político da ação, uma vez que o arroz subsidiado chegaria ao mercado em setembro, mês anterior às eleições, com a logomarca do governo federal. “É uma interferência clara”, disse o deputado federal Alceu Moreira (MDB-­RS), da bancada ruralista.

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O governo, no entanto, insistiu na medida. O leilão, em si, foi um fracasso, porque a União não conseguiu as 300.000 toneladas que pretendia — o pacote todo prevê 1 milhão de toneladas. A abertura dos envelopes fez o problema escalar. A empresa que levou o maior naco, 763 milhões de reais, era a Wisley A. de Souza Ltda, que opera uma loja em Macapá com o nome fantasia de “Queijo Minas”. A firma tinha um capital social de apenas 80.000 reais dias antes do leilão, quando mudou seu contrato social para que o valor chegasse a 5 milhões de reais, credenciando-a dentro dos requisitos do edital. Apenas a Zafira, uma companhia de trading de Florianópolis, possuía um histórico de atuação próximo do que exigia o edital.

O constrangedor resultado do leilão despertou suspeitas de fraudes, o que politicamente era um desastre. No Legislativo, a oposição usa o assunto como nova trincheira para fustigar o governo e articula a instalação de uma CPI. A iniciativa é do deputado Luciano Zucco (PL-RS), ex-presidente da CPI do MST, que afirma ter 139 das 171 assinaturas necessárias para que o pedido seja protocolado. “Chama a atenção que, na medida em que estamos próximos de atingir o número, tenha havido a anulação do leilão. Estão assumindo alguma espécie de culpa que precisa ser investigada”, diz. A ideia pode ser apoiada pelo ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo aliados, ele se empolgou com a possibilidade de abrir uma investigação contra Lula no Congresso. “O Amapá não produz nada, não tem desenvolvimento econômico, não tem empresas. De onde surgiu uma lojinha de queijos capaz de fazer a importação de um volume tão abrupto de grãos?”, questiona Silvia Waiãpi (PL-­AP), uma das signatárias da petição pela CPI. “A investigação vai apurar se de fato houve fraudes em relação a essas empresas”, afirma Lucas Redecker (PSDB-RS), deputado que assinou a ação que resultou na suspensão do certame na Justiça gaúcha.

A VENCEDORA - Queijo Minas, em Macapá: contratos de 763 milhões de reais
A VENCEDORA - Queijo Minas, em Macapá: contratos de 763 milhões de reais (//Reprodução)
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Outro episódio que aguça o interesse da oposição é a atuação de Neri Geller. Deputado por três mandatos e cacique do PP em Mato Grosso, ele perdeu os direitos políticos em 2022 por abuso de poder econômico e não conseguiu a reeleição. Apesar de ter sido interlocutor de Lula com o agronegócio durante a campanha, só entrou para o governo em dezembro de 2023, uma semana depois de ter mudado a sua situação judicial. Na Esplanada, partiu dele a indicação de Thiago José dos Santos, atual diretor de Operações e Abastecimento da Conab, divisão que organizou o certame. Três das quatro firmas que ganharam o leilão foram representadas pela Foco Corretora de Grãos Ltda, empresa do ex-assessor parlamentar do ex-secretário, Robson Luiz Almeida de França. As coincidências não terminaram aí. Apesar de Geller ter dito que a relação de trabalho entre os dois terminou em 2020, França consta até hoje como advogado do ex-deputado em 31 processos na Justiça Eleitoral de Mato Grosso — incluindo a prestação de contas do diretório estadual do PP, que já foi presidido pelo ex-secretário. O filho dele, Marcello Geller, é sócio de uma empresa com França. A VEJA, Neri Geller defendeu a licitude do leilão anulado e disse que não tem “uma vírgula a esconder”.

O episódio contrariou Lula porque virou mais uma arma política para a oposição. Apesar de a ideia ter sido sua, o presidente ficou irritado com a forma amadora com que a sua equipe conduziu o processo. Em reunião com Fávaro e Teixeira e com o advogado-­geral da União, Jorge Messias, Lula avaliou que a crise tinha potencial de atingir a imagem do governo e dar margem às especulações em torno de uma reforma ministerial, o que ele não pretende fazer antes do fim do ano. E pediu providências. Horas depois Geller foi exonerado. O episódio também enfraquece Fávaro politicamente e, a depender dos desdobramentos da crise, pode causar novas baixas na Conab. Na quarta-feira 12, a Polícia Federal abriu inquérito para apurar o caso.

MÁ LEMBRANÇA - Fiscais fecham loja em 1986: congelar preços não resolveu
MÁ LEMBRANÇA - Fiscais fecham loja em 1986: congelar preços não resolveu (Rogério Carneiro/Folhapress/.)
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Além de não ter gerado nenhum ganho de imagem para o governo, o episódio piorou a relação de Lula com o agronegócio, responsável por um quarto do PIB brasileiro e dono de uma bancada poderosa no Congresso. “Foi uma crise criada. O governo já queria, lá atrás, importar direto algumas coisas. Não havia problema de abastecimento”, diz a senadora Tereza Cristina (PP-MS), ex-ministra da Agricultura e membro da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). Com o senador Ciro Nogueira (PP-PI), presidente do partido, ela protocolou no Tribunal de Contas da União uma representação pedindo apuração das empresas envolvidas. Integrantes da FPA afirmam também ver com incerteza a gestão compartilhada da área agrícola entre o Ministério da Agricultura, comandado por Carlos Fávaro (PSD), e o Ministério do Desenvolvimento Agrário, chefiado pelo petista Paulo Teixeira. Isso porque a Conab, liderada pelo também petista Edegar Pretto, candidato derrotado ao governo gaúcho em 2022, estaria mais ligada ao MDA do que à pasta de Fávaro.

A ideia também ajudou a carimbar no governo ainda mais a imagem de intervencionista e de um mandato apegado a ideias ultrapassadas, como o gigantismo do Estado, o uso de dinheiro público para sustentar o crescimento econômico e, agora, a prática de brigar com o mercado recorrendo a um arcaico tabelamento de preços. Os consumidores brasileiros não guardam boas lembranças das medidas tomadas no passado para segurar na marra os preços, como o Plano Cruzado, que em 1986 congelou preços e reduziu a inflação em curto prazo, resultando no aumento da popularidade do então presidente José Sarney. O plano, no entanto, causou um represamento e, a médio prazo, resultou em escassez e nova disparada dos preços. “Não há razão para o governo controlar preços. É como colocar gelo no termômetro”, resume o economista Cleveland Prates, professor de regulação econômica e organização industrial da Fipe. “Quem vai querer produzir sabendo que o governo vai interferir no preço de mercado?”, questiona.

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Por qualquer ângulo que se olhe, a iniciativa foi um tiro no pé dado por Lula e seu governo. A lição que fica é que uma má ideia já tem potencial suficiente para dar errado — com as trapalhadas, ou coisa pior, produzidas pelo governo, não tinha mesmo como dar certo. O arroz passou do ponto.

Publicado em VEJA de 14 de junho de 2024, edição nº 2897

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