Lula e Bolsonaro lideram, mas um terço dos eleitores ainda pode mudar voto
Embora o favoritismo dos dois candidatos esteja cada vez mais consolidado nas pesquisas, o fator de infidelidade pode alterar o cenário de forma radical
A cinco meses do primeiro turno, os últimos levantamentos dos principais institutos de pesquisa reforçam o cenário polarizado na corrida presidencial. Uma lenta, mas constante, recuperação da popularidade de Jair Bolsonaro (PL) e a estabilização de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no topo indicam que esse pode ser realmente o duelo final. Nesse cenário, a aposta inicial da chamada terceira via, a de investir em quem não quer nenhum dos dois, começou a ficar estreita — segundo pesquisa BTG/FSB de abril, apenas 11% do eleitorado diz hoje que não votaria nem em Lula nem em Bolsonaro. Esse cenário de favoritismo dos atuais líderes tem levado a análises apressadas de que a disputa já está resumida a esses dois favoritos, mas há margens para reviravoltas, e elas não são desprezíveis.
Uma análise mais atenta dos dados das sondagens de intenção de votos revela que o fator de infidelidade pode mudar o cenário de forma radical. Como mostra a mais recente pesquisa Datafolha, um em cada três eleitores admite a possibilidade de mudar sua preferência até outubro. O dado traz desafios para todos. Para Lula e Bolsonaro, o esforço será o de evitar essas “traições”. Enquanto isso, talvez como última chance de uma virada, os adversários devem concentrar energia na conquista desse contingente. “A maior probabilidade é a polarização da eleição”, diz Carlos Pereira, cientista político da FGV. “Mas podemos ter surpresas. Variáveis não explicitadas podem se revelar fundamentais no decorrer do jogo”, completa.
O mapeamento do grupo desses possíveis infiéis mostra que há nichos bem promissores a ser explorados. Entre os jovens de 16 a 24 anos, nada menos que 50% admitem mudar o voto. Os porcentuais também são acima da média entre as mulheres, entre os brasileiros com ensino médio ou superior e entre aqueles que ganham mais de dez salários mínimos mensais (veja o quadro). Na Região Sudeste, que concentra quase metade do eleitorado e onde os líderes das pesquisas enfrentam mais dificuldades, 35% admitem que podem mudar sua opção. Em Minas Gerais, nem Lula nem Bolsonaro têm um candidato próprio e tentam apoios, respectivamente, de Alexandre Kalil (PSD) e Romeu Zema (Novo). Em São Paulo, o petista Fernando Haddad lidera, mas divide os votos da esquerda com Márcio França (PSB). Já o candidato de Bolsonaro, Tarcísio de Freitas (Republicanos), embora esteja pontuando bem nas primeiras sondagens de voto entre os paulistas, deve ter pela frente uma dura batalha para vencer na mesma faixa de eleitores o tucano Rodrigo Garcia, que tem a seu favor o fato de o PSDB vencer as eleições no estado há 28 anos.
Esse cenário deixa ainda cada vez mais claro que há uma demanda reprimida por uma alternativa a Lula e a Bolsonaro. Falta, no entanto, alguém capaz de explorar com firmeza essa avenida. Para os eleitores “infiéis”, a balança pode pender a favor de quem mostrar condições de, no segundo turno, derrotar quem eles não querem ver no Palácio do Planalto nos próximos quatro anos. Segundo a BTG/FSB, 39% dos entrevistados admitem essa possibilidade. Esse número é menor entre os eleitores de Bolsonaro (26%), mas chega a 42% entre aqueles que hoje apontam preferência por Lula. O pouco entusiasmo com os seus candidatos — que os especialistas chamam de “voto frustrado”, ou seja, mais motivado pela rejeição ao outro do que pela empolgação com seu escolhido — ficou evidente nas manifestações do último 1º de Maio, quando Bolsonaro e Lula arrastaram públicos abaixo do esperado aos eventos a que compareceram, em Brasília e São Paulo, respectivamente, evidenciando que o clima de guerra que se vê nas redes sociais está muito distante ainda de contaminar a maioria das pessoas.
Dispostos a manter a qualquer custo o atual favoritismo, Lula e Bolsonaro frequentemente disparam acenos em direção a suas bases, de forma a evitar uma revoada de infiéis. O presidente voltou a pisar fundo nos embates com o STF, tema que empolga seus seguidores mais radicais. Enquanto isso, o petista vem batendo na tecla de promessas populistas, como a de uma revisão da reforma trabalhista. Entre os demais adversários, a dúvida está no que fazer para conquistar esse eleitor que pode se desgarrar. Para as campanhas de Ciro Gomes (PDT), João Doria (PSDB), Simone Tebet (MDB) e Luciano Bivar (União Brasil), hoje os principais nomes a reivindicar o espaço na terceira via, o convencimento passa pela apresentação de propostas concretas que representem alguma perspectiva real de mudança do atual quadro econômico, principalmente no que se refere ao aumento de preços de alimentos, combustíveis e outros bens de interesse mais imediato da população. A estratégia mira sobretudo os descontentes com o presidente. Doria, por exemplo, exibe números segundo os quais, sob sua gestão, apesar da pandemia, São Paulo cresceu mais que a média do Brasil sob Bolsonaro. Há quem direcione a artilharia aos dois polos. “Cada vez mais temos de bater no que mexe na vida das pessoas, o bolso, e apontar as incompetências deste governo e dos governos que nos últimos vinte anos geraram a inflação”, diz Carlos Lupi, coordenador de Ciro.
Embora pareça um desespero de causa, a tática de atirar ao mesmo tempo em Lula e em Bolsonaro pode fazer sentido na reta final. Relembrar a má gestão macroeconômica que culminou em problemas como inflação e desemprego, sentidos diretamente no bolso pelos eleitores, serve tanto para falar dos últimos anos do PT no governo, com Dilma, quanto do período mais recente, sob Bolsonaro e Paulo Guedes. Outros problemas devem ser ressaltados ao longo da campanha, como a corrupção, no caso de Lula, e a péssima gerência da pandemia de Covid-19, no que se refere a Bolsonaro. “Mas a terceira via não tem conseguido apresentar propostas que dialoguem com esses interesses para conquistar a simpatia dos eleitores”, ressalva Felipe Nunes, diretor da Quaest Consultoria e Pesquisa.
A dificuldade de apresentar propostas claras nesse sentido é, de fato, um nó para a terceira via, que não conseguiu colocar com clareza o seu ponto de vista no debate. Mas isso é só consequência de outros problemas. Um dos principais é a fragmentação do “centro democrático’, que dificulta uma identificação por parte do eleitor que está disposto a trocar os dois polos da corrida por uma alternativa. Além de fragmentado, há muita relutância entre os envolvidos em abdicar de protagonismo. Questionado no PSDB, Doria não abre mão da cabeça de chapa, assim como Simone e Bivar, cujo partido, inclusive, já desembarcou das conversas sobre uma candidatura única. O que os une mais no momento é a dificuldade de pontuar bem nas pesquisas. Ciro Gomes, estacionado há um ano na casa dos 7% de intenções de voto, também não admite desistir da candidatura para tentar uma composição — nas últimas semanas, passou a flertar com o PSD de Gilberto Kassab e com o próprio União Brasil para tentar capitalizar apoios em meio à deterioração do grupo de centro. Para complicar, o MDB tem uma guerra interna entre lulistas e bolsonaristas, e pouca gente disposta a bancar o nome de Tebet.
Outro problema para o bloco é a peculiaridade desta eleição, que envolve um ex-presidente, que deixou o governo com boa aprovação popular, e o atual, que, apesar dos erros variados que comete, vê a sua avaliação melhorar, o que pode dar à disputa um caráter plebiscitário. Nunca houve uma disputa entre dois candidatos que já tivessem comandado o país. “Diferentemente dos demais, as intenções de voto em Lula e Bolsonaro estão associadas às suas avaliações de governo”, diz o sociólogo e cientista político Antonio Lavareda.
Embora não seja tão comum, a eleição presidencial já comportou algumas viradas históricas. Em 1989, durante boa parte da corrida, a polarização se deu entre Fernando Collor (PRN) e Leonel Brizola (PDT), mas Lula superou o pedetista por 1 ponto porcentual e foi ao segundo turno. Em agosto de 2014, Marina Silva (PSB) chegou a liderar a corrida com 34% (empatada com Dilma) em agosto, após ter herdado a vaga em razão da morte de Eduardo Campos em um acidente aéreo. Mas foi alvejada pela artilharia da propaganda petista e naufragou na reta final, perdendo inclusive o segundo lugar para Aécio Neves (PSDB). As disparadas de Wilson Witzel ao governo do Rio em 2018 e a surpreendente vitória de Emmanuel Macron na França em 2017 — que fundara o partido seis meses antes — são outros exemplos citados pelos especialistas para mostrar que a transferência de votos pode ocorrer.
O aspecto da imprevisibilidade se torna mais relevante num país que, nas últimas duas eleições, testemunhou um acidente de avião e um atentado à faca envolvendo presidenciáveis, incidentes que influenciaram o rumo da disputa a poucos meses do pleito. A corrida atual ao Palácio do Planalto tem, claro, os seus favoritos, mas é cedo para a concorrência jogar a toalha em um país no qual o improvável sempre pode acontecer. Cinco meses no Brasil, ainda mais na política, é uma eternidade.
Publicado em VEJA de 11 de maio de 2022, edição nº 2788