Lula dobra aposta no Bolsa Família em versão repaginada do programa
Com novidades e promessas de resolver problemas crônicos do benefício, presidente se prepara para retomar uma das principais vitrines eleitorais do PT
Guaribas conta os dias para o relançamento do programa que, por quase duas décadas, tem sido visto como a grande marca do Partido dos Trabalhadores. Está previsto para os próximos dias o anúncio oficial do Bolsa Família repaginado, uma das maiores promessas de Luiz Inácio Lula da Silva. Ele substituirá o bolsonarista Auxílio Brasil, prevendo, além dos atuais 600 reais por família, mais 150 reais adicionais para cada criança de até 6 anos. Localizada no sertão do Piauí, Guaribas virou a cidade-berço da iniciativa em 2003, quando a primeira versão foi lançada pelo petista. O que aconteceu no passado alimenta a esperança de um futuro melhor. Por isso, a gratidão ao petista quase não tem limites. “Aqui é Deus no céu e Lula na Terra”, diz o vice-prefeito, Joziel Alves (MDB). Ali, Lula teve 93,86% dos votos válidos no segundo turno, contra 6,14% de Jair Bolsonaro. Com a distribuição do dinheiro público, a cidade teve ligeira melhora nos indicadores sociais — seu IDH subiu de 0,214, em 2000, para 0,508 em 2010, ainda abaixo da média do estado, de 0,646, mas o suficiente para que os moradores relatem avanços. “O cenário aqui era outro, só sabe quem vivenciou na prática. As pessoas não tinham renda fixa, viviam da roça”, conta Alves.
Importantíssimo sobretudo às populações de pequenos municípios do Norte e do Nordeste, como Guaribas, onde há poucas oportunidades de trabalho, o Bolsa Família atende atualmente a 21,9 milhões de famílias no país e sua nova versão é uma das principais apostas deste primeiro ano do novo governo Lula. Com 175,7 bilhões de reais reservados na lei orçamentária de 2023, o programa supera os orçamentos de ministérios importantes como Educação (158,9 bilhões de reais), Defesa (122,6 bilhões de reais), Segurança Pública (20,2 bilhões de reais) e Meio Ambiente (3,5 bilhões de reais). Garantir os recursos ao auxílio fora do teto de gastos consumiu um enorme esforço político antes mesmo da posse do petista, com as articulações pela aprovação da chamada PEC da Transição. O desenho da nova versão demandou esforços de uma equipe que, além do ministro Wellington Dias, do Desenvolvimento Social, incluiu a ministra do Planejamento, Simone Tebet, e as ex-ministras Tereza Campello e Márcia Lopes desde a transição. Além de manter o benefício no patamar de 600 reais mínimos às famílias e incluir um pagamento extra referente às crianças (só esse benefício terá um custo de 18 bilhões de reais em 2023), o “novo” Bolsa Família também voltará a exigir contrapartidas aos beneficiários, como vacinação e frequência escolar. “Não se trata só de volume de dinheiro, mas de eficiência dos investimentos como política pública”, diz Renato Meirelles, presidente do Instituto Locomotiva.
Um dos carros-chefe do novo Bolsa Família, o pagamento de 150 reais extras para cada criança de zero a 6 anos é visto como forma de retomar o critério de proporcionalidade que existia no antigo programa — quanto maior a família, maior a necessidade de dinheiro —, limado pelo governo Bolsonaro. O ideal, segundo especialistas, era que se voltasse ao desenho antigo, com valores de acordo com o tamanho das famílias. Depois que Bolsonaro elevou no Auxílio Brasil o pagamento médio (inicialmente para 400 e depois para 600 reais), no entanto, é difícil voltar atrás, por questões políticas. “A única coisa em que a regra dos 600 reais é ‘boa’ é em termos eleitorais”, diz Marcelo Neri, diretor do FGV Social e um dos maiores estudiosos do assunto.
Já que não pega bem mexer nos 600 reais pagos pelo antecessor e cuja manutenção foi prometida pelo petista na campanha, a equipe do novo governo diz que vem procurando corrigir outras distorções da proposta original. Um exemplo citado são os furos no Cadastro Único causados pelo Auxílio Brasil de Bolsonaro. Em uma entrevista recente, Wellington Dias afirmou que há suspeitas de 2,5 milhões de fraudes no sistema, com famílias recebendo indevidamente o dinheiro — casos como os de pessoas com renda de até nove salários mínimos sendo beneficiadas.
O time de Lula também se debruça em busca de soluções para o fenômeno do crescimento anormal do número de famílias que se declaram como sendo compostas de uma só pessoa, problema já detectado pelo Tribunal de Contas da União. Isso não ocorria com o antigo Bolsa Família, que não distribuía um valor fixo. A multiplicação de casos se intensificou desde o lançamento do Auxílio Brasil, em outubro de 2021, com valor universal de 400 reais a todas as famílias, independentemente de seu tamanho, em lógica “herdada” do auxílio emergencial pago na pandemia.
Como resultado disso, muitos casais com dois filhos ou mais começaram a declarar morar em casas separadas, de forma a receber o benefício em dobro. Segundo estimativas de Marcelo Neri com base em dados do Cadastro Único, desde a instituição do Auxílio Brasil o tamanho médio das famílias cadastradas no programa caiu de 3,01 pessoas, em novembro de 2021, para 2,59 em outubro de 2022. Em menos de um ano, a proporção de famílias com quatro pessoas ou mais se reduziu de 33% para 24%, enquanto a de famílias unipessoais quase dobrou, saltando de 15% para 26%. “Houve um incentivo cavalar para que as pessoas distorcessem os dados”, afirma Neri, que estima em 55% o desperdício de recursos com a adoção do “piso” de 600 reais.
Para fazer frente ao problema, o governo atual pretende passar um pente-fino no banco de dados. O primeiro passo foi a criação de uma opção no aplicativo do CadÚnico que permite aos cadastrados indevidamente se retirarem da lista de beneficiários. Em outra frente, o governo federal prevê fazer parcerias com prefeituras para enviar agentes municipais aos endereços cadastrados, a fim de que verifiquem se os moradores estão recebendo os benefícios de maneira regular. A gestão Lula estima que a “limpeza” das famílias unipessoais no CadÚnico se estenda de março a dezembro e prevê uma campanha informativa sobre as regras do programa, a ser lançada até abril. Outra medida que membros do governo consideram importante para os ajustes do Cadastro Único foi o início de sua integração ao Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS), base de dados com informações sobre vínculos empregatícios, remunerações e contribuições previdenciárias dos cidadãos.
O desenho pensado por membros da gestão prevê como critério para participar do programa uma renda de até 525 reais por mês para cada integrante da família, que hoje é de até 210 reais. No passado, um beneficiário do Bolsa Família era excluído do programa quando conseguia emprego. Daqui para a frente, quem recebe o benefício poderá estar empregado formalmente e continuar dentro do Bolsa Família, caso sua renda mensal per capita não ultrapasse os 525 reais. Assim, a medida também ajudaria a combater estímulos à informalidade no trabalho entre os beneficiários.
Antes da era petista, o grande marco em iniciativas de renda mínima no país foi o Bolsa Escola, de Fernando Henrique Cardoso. Ao chegar ao Palácio do Planalto, o petista reuniu esse e outros programas sociais da época do tucano, criando a marca Bolsa Família. Com base nos resultados obtidos a partir de 2003, Lula acredita que o novo programa será essencial no combate à miséria, sua principal bandeira. De fato, todas as pesquisas sobre insegurança alimentar mostram que o Brasil avançou no enfrentamento desse mal de 2004 a 2014, um mérito dos governos petistas, embora a fome nunca tenha sido completamente eliminada, apesar de Lula não se cansar de repetir a “façanha”. Por volta de 2014, ainda no primeiro governo de Dilma Rousseff, os indicadores sociais voltaram a piorar, dando início a um processo que se intensificou entre 2018 e 2022, nos governos Michel Temer e Bolsonaro.
A explicação para o sucesso do primeiro período do PT no governo, no entanto, não está relacionada somente ao Bolsa Família. Naquele ciclo, houve uma conjunção de iniciativas que contribuíram para o enfrentamento da fome e da miséria, como o Programa de Aquisição de Alimentos, pelo qual o governo comprava a produção de pequenos agricultores e a distribuía, o Programa Nacional de Alimentação Escolar, responsável pelas refeições de crianças da rede pública e desarticulado na pandemia, a construção de cisternas no Nordeste, a valorização do salário mínimo e medidas como o reconhecimento dos direitos das empregadas domésticas. Algumas dessas iniciativas perderam força nos últimos anos e o governo pretende retomá-las, em paralelo ao Bolsa Família.
O programa de distribuição de renda trouxe muitos frutos políticos a Lula, sobretudo em sua primeira reeleição, e teve peso nas duas vitórias de sua pupila, Dilma. Mesmo com o PT longe do governo por seis anos, pesquisas mostram que o Bolsa Família até hoje tem efeitos sobre a popularidade de Lula e do partido. Segundo levantamento divulgado na última semana pela Quaest, 77% dos beneficiários do programa acham que o governo Lula se importa com eles, enquanto a volta ou aumento do Bolsa Família foi o segundo tema mais lembrado pelos entrevistados nos dois meses da nova gestão. Entre as faixas de renda, pessoas que ganham até dois salários mínimos são as que mais avaliam o governo Lula positivamente (47%) e as que mais se identificam com o PT (43%). “O Bolsa Família é o programa mais conhecido do PT e de maior vínculo positivo aos anos em que o partido governou o país”, resume Felipe Nunes, diretor da Quaest.
O acerto em retomar o programa com o cuidado de corrigir as distorções mais flagrantes não elimina o fato de que é preciso aperfeiçoar ainda muito mais a política. Segundo estudiosos no assunto, a superação da pobreza precisa incluir incentivo ao trabalho, o que exige uma série de ações muito mais amplas e coordenadas. Exemplo disso é a volta da obrigatoriedade escolar, que não basta por si só. A primeira versão do Bolsa Família aumentou o número de matrículas, é verdade, mas isso não se refletiu na melhoria do aprendizado em geral. Fora discursos genéricos de intenções, Lula ainda não explicou como o novo programa será capaz de evitar esse grande erro do passado, que é o efeito cíclico de dependência do dinheiro público.
Trata-se de uma questão fundamental, dado o tamanho do investimento feito na distribuição de renda por um país empobrecido como o Brasil. O programa corresponde hoje a 1,2% do PIB, quase cinco vezes mais do que em 2003. Essa conta fica ainda mais impressionante quando se analisam as regiões campeãs na dependência do benefício. Estudo do professor Ecio Costa, titular do Departamento de Economia da UFPE, mostra que os desembolsos corresponderam em 2022 a 15% da projeção do PIB de Guaribas — há municípios nordestinos em que a relação supera a casa dos 30%. Cabe ainda ao governo, acima de tudo, zelar pela política fiscal para impedir males que castigam com força os mais pobres. “Sem controle de inflação, o poder de compra se deteriora. É fundamental a preocupação social com responsabilidade fiscal”, lembra Costa. Com financiamento do Bolsa Família garantido apenas para 2023, o governo terá de encarar em breve novas negociações com o Congresso para garantir a continuidade. Mais do que isso, precisará encontrar políticas eficazes para ele ser muito mais do que um necessário e urgente remédio contra a pobreza, tornando-o um efetivo instrumento de real transformação de vidas.
Publicado em VEJA de 1º de março de 2023, edição nº 2830